Fui convidada a participar no programa “Queridas Manhãs” da SIC na emissão de 18 de Janeiro. A entrevista iria centrar-se sobre as propostas de lei de identidade de género e sobre a descida da idade mínima de acesso à mesma.
Um dos convidados a estar presente foi o Dr. Décio Ferreira, médico cirurgião plástico responsável pelas cirurgias de redesignação sexual feitas no sistema de saúde privado. É de difícil entendimento a razão na escolha de um médico da especialidade de cirurgia falar em público sobre diagnósticos de disforia de género quando estes são assinados por médicos da área de psiquiatria e sexologia clínica. A minha intervenção foi feita via telefónica a meio da entrevista (aqui).
A intervenção inicial do Dr. Décio Ferreira começa na diferenciação entre orientação sexual e identidade de género, ao que se transcreve “a homossexualidade que é uma orientação sexual, outra coisa é a transexualidade, ou disforia de género, que não tem nada a ver com isso, que é uma doença (…) uma doença em que o corpo é normal, não tem doença nenhuma, o cérebro também é normal, não tem doença nenhuma psiquiátrica, só que o cérebro que se desenvolveu durante a concepção é de um sexo diferente do sexo do corpo”. A entrevista prossegue e fala-se do rigoroso diagnóstico que deve ser dado a pessoas trans para que lhes seja dado o acesso a poderem mudar legalmente de nome. Surge o tema das recomendações internacionais e, segundo o comunicado da Associação ILGA:
Os profissionais de saúde que trabalham nesta área devem, sim, cumprir as orientações internacionais da World Professional Association for Transgender Health (WPATH). Mas pessoas trans não são doentes, não são uma doença, ao contrário do que foi dito no programa. A WPATH é clara ao afirmar que as pessoas trans experienciam a transexualidade de diferentes formas, e que nenhuma identidade é uma doença. Segundo a WPATH, qualquer diagnóstico clínico nesta área deve referir-se apenas ao sofrimento com significado clínico que várias pessoas trans vivenciam em determinados momentos da sua vida – nunca às suas identidades ou expressões de género, porque são as próprias pessoas que sabem quem são. Também a World Medical Association (WMA) afirma que “todas as pessoas têm o direito de determinar o seu próprio género e reconhece a diversidade de possibilidades a este respeito” e “exige que médicos/as defendam o direito de cada indivíduo à autodeterminação do seu género”. A WMA afirma ainda que “a incongruência de género não é em si um transtorno mental; no entanto, pode levar a desconforto ou angústia, que é referido como disforia de género
Durante a entrevista discute-se a existência do diagnóstico, mas infelizmente não se especifica em que moldes esse mesmo diagnóstico é feito. A informação que não é referida é, talvez, a mais importante: que na sua maioria, os diagnósticos são feitos com base em meras observações e estereótipos de género tão bem acentuados numa sociedade como a nossa. Este diagnóstico rigoroso visa normalizar identidades, policiar a sua livre expressão e condição no mundo. Vale a pena recordar o artigo a propósito do dia internacional da despatologização trans.
A minha intervenção seguiu-se, primariamente, com um testemunho de história pessoal onde reafirmei a minha identidade não binária. A resposta foi clara “não sei onde lhe passaram o diagnóstico ou o relatório, o sentir que não se sente um homem ou mulher é um contra-senso em relação ao diagnóstico de disforia de género (…) uma pessoa que anda entre uma coisa e outra, uns dias sofre e outros dias não sofre (…) um dia é doente, outro dia não é doente”. Depois de uma nova intervenção minha e da chamada de atenção para a necessidade de cuidados de saúde assegurados para todas as pessoas, é-me retirada a palavra.
A entrevista termina com a ideia de que se não é doença, então o Estado não tem que assistir nos cuidados de saúde. Novamente:
Estas iniciativas separam de forma clara as esferas legal e da saúde. São muitas e graves as dificuldades que as pessoas trans enfrentam na área da saúde, para as quais a ILGA Portugal tem alertado há vários anos. São necessárias e urgentes várias medidas concretas nesta área, desde logo garantir que o Sistema Nacional de Saúde disponibiliza todos os tratamentos médicos necessários para o bem-estar físico e psicológico de pessoas trans. São vários/as os/as profissionais competentes a trabalhar nesta área, mas as declarações proferidas hoje revelam bem a importância da formação a profissionais de saúde. Continuaremos a trabalhar para garantir cuidados de saúde competentes para todas as pessoas, e também para garantir o acesso à identidade legal em processos dignos e respeitadores da autodeterminação das pessoas trans.
Um discurso que claramente continua a beneficiar algumas pessoas em detrimento do sofrimento de outras. Lembremo-nos que a população trans continua a ser das populações com mais alta taxa de suicídio (de uma forma mais clara, homicídio social), continua a ser das populações que mais sofre discriminação e das populações que por consequência mais depressões apresenta. O reconhecimento da identidade de cada pessoa é uma passo fundamental para a sua própria felicidade e a garantia dos cuidados de saúde são essenciais para o bem estar da sua vida. Negar ambos é retirar a dignidade a esta comunidade. Contribuir para a manipulação dos serviços de saúde é um atentado aos direitos humanos e um grande retrocesso social.
Porque esta comunidade merece mais e melhor, porque esta comunidade merece deixar de estar na sombra da população, porque esta população merece existir em pleno como qualquer outro cidadão de pleno direito.
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