Friends: Homofobia E Transfobia No Pequeno Ecrã


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Existe um estranho fenómeno que consiste em depararmo-nos com uma visão retrógrada do mundo quando assistimos a uma obra com alguma idade. Poderá até dizer-se que existe um equilíbrio entre as circunstâncias históricas e a vanguarda da própria obra. Mas o que acontece quando vemos, estupefact@s, que o que outrora assistimos de forma despreocupada e não questionada, provoca-nos, hoje, um estado de estranheza e choque?

Aconteceu-me precisamente isso enquanto revia a série Friends, um dos maiores sucessos televisivos de sempre e que preencheu uma década inteira o horário nobre das televisões norte-americanas entre 1994 e 2004. Que diferença fazem esses 10 a 20 anos no tipo de humor popular visto por milhões? A resposta é desde já óbvia – muita! – mas há também um ponto positivo que importará reter.

A série, que reúne um grupo de amigos e amigas, começa desde logo a contar a história de Ross que está num processo de divórcio com Carol, inicialmente grávida, que se assumiu lésbica e que pretende ter a criança com a sua companheira, Susan. Também desde os primeiros episódios descobrimos que as pessoas assumem – erradamente – que o Chandler é gay baseando-se em estereótipos e clichés.

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Mas o conteúdo de ódio mais ou menos implícito não se fica por aqui. Descobrimos mais tarde que o mesmo Chandler cortou relações com o pai, envergonhado por este ser actualmente uma drag queen com um espectáculo em Las Vegas… e que, com clara confusão de conceitos por parte dos argumentistas da série, é afinal uma mulher trans. Nunca chegamos a saber sequer o nome actual da personagem, dado que durante os vários episódio ela é tratada no masculino e pelo nome antigo. Transfobia much?

Estes são apenas alguns exemplos que se prolongam por vários episódios durante as dez temporadas da série, mas há mais, muitos mais: desde a constante objectificação das mulheres, à demonização do parto e do dar de mamar a uma criança. Tudo isto embrulhado numa sopa de diversidade nula, em que a esmagadora maioria das personagens, tal como muitas outras séries e filmes da altura, é heterossexual, cisgénero, branca e, especialmente irónico no caso desta, vivem numa das cidades emblemáticas do melting pot: Nova Iorque.

Não está aqui em causa a liberdade para se abordar um determinado tópico, afinal de contas todos os estereótipos ali presentes foram igualmente retratados em Will & Grace, uma série que surgiu poucos anos depois e que co-existiu com Friends. Mas a intenção de uma e outra claramente distinguiu-as, enquanto uma prolongou e alimentou toda a questão da vergonha em relação a uma orientação minoritária ou a uma identidade de género trans, a outra pegou nesses mesmos exemplos e desconstruiu-os as vezes que foram necessárias até estes deixarem de fazer sentido.

Enquanto Friends ajudou a cimentar ideias retrógradas durante uma década inteira promovendo a insegurança das personagens que eram confrontadas com as questões LGBTI, já Will & Grace emancipou a população LGBTI – sim, incluindo todas as pessoas que se enquadram nos clichés – perante uma sociedade que a seguiu durante 8 anos no horário nobre da televisão norte-americana até 2006.

O ponto a reter, e que é razão de orgulho numa sociedade ocidental que se deseja inclusiva e respeitadora dos direitos individuais de toda a sua população, é que em pleno 2016 toda esta perspectiva de vergonha em relação a um grupo de pessoas eternamente perseguido e minorado na sua representação quer no pequeno como grande ecrã deixa-nos desconfortáveis. Bastou uma década ou menos para que este bullying e este ódio implícitos deixassem de nos fazer sentido e começássemos a ver por aquilo que realmente são: bullying e ódio. Ponto.

Em 2016 Friends já não poderia ter este tipo de argumento e ainda bem. Não se julgue que tudo ficou resolvido na última década – bem longe disso e parece haver, inclusive, um recuo – mas é uma clara vitória percebermos como o grande público, essencial para que a sociedade evolua no seu todo, deixou de achar este tipo de humor uma coisa aceitável. As obras culturais são muitas vezes reclusas do seu próprio tempo, mas aquilo que distingue as grandes das pequenas é precisamente a forma como conseguem envelhecer sem perderem o seu impacto. E nisso, todos estes amigos e amigas estão hoje velhos, muito velhos.

 

4 comentários

  1. Friends mostra piadas já existentes entre nós, retrata um preconceito vivo na sociedade (não é esta, TAMBÉM, uma característica da televisão e do cinema?) mas, mesmo assim, mostra o preconceito a ser vencido.

    Acho muito mais importante e eficaz no combate à homofobia o retrato que fazem de um Ross ridículo por ser tão preconceituoso enquanto que, na contrapartida, a série mostra Susan e Carol como mães exemplares do Ben, um casal onde ambas prosseguem juntas, tranquilas e em paz, cúmplices uma da outra até ao fim da série, sem distúrbios, sem problemas nenhuns, em contraste com os atribulados relacionamentos héteros e ditos “normais” sob a ótica do preconceito que preenchem a série até ao fim.

    É de indignar a homofobia de Ross quando Rachel contrata como baby sitter um homem sensível (gay ou não, não nos fica claro) e obriga a demiti-lo; e ao longo de todo o episódio, os roteiristas forçam-nos a gostar do baby sitter com as cenas de ternura do rapaz, deixando-nos ainda mais inconformados. No final do episódio, vem a surpresa: Ross confessa a sua própria fragilidade quando criança, pois gostava até de usar roupas que sugeriam uma certa feminilidade, e confessa também a dor de ter sido reprimido pelo pai. Também não forçamos muito o entendimento, nem exemplos nos faltam para isso, quando vemos que os criadores, ao longo dos anos, nos fazem acreditar, lenta, discreta e inconscientemente naquilo que já sabemos há muito tempo: que os maiores homofóbicos são homossexuais enrustidos. E episódios não faltam para nos sugestionar uma homossexulidade latente no Ross e até mesmo no Joey: basta que nos lembremos do episódio em que ambos, ao verem um filme, dormem no colo um do outro sem querer, assustam-se com isso quando acordam, mas muito relutantemente, acabam por confessar terem gostado da experiência ao ponto de a quererem repetir e, de facto, repetem.

    Há também o episódio onde mostram um vídeo da infância do Ross a brincar de casinha, a servir chá e vestido de mulher. Há ainda um outro episódio em que a mãe dele o envergonha à frente de todos, dizendo que quando criança ele escondia o pénis entre as pernas e saía a gritar e a chorar pela casa. E há mais exemplos disto que só confirmam, ainda que isto possa passar despercebido e “distante” de um entendimento direto e consciente do telespectador que, afinal, a homofobia de Ross é um sinal de uma bichice enrustida.

    Passar essa mensagem para o inconsciente de milhões, tendo sido a série de maior audiência de sempre, é algo de se louvar, a meu ver.

    Há também o episódio da quebra da criação heteronormativa, quando Ben vai passar um dia com o Ross e leva a sua Barbie, enquanto que Monica e Rachel mostram se “ok” com isso, Ross é retratado como um ridiculo, um desesperado homofóbico (e aqui o telespectador já tem a informação da sua homossexualidade reprimida) a tentar fazer, a todos os custos, com que o menino goste do boneco de um soldado.

    Eu gosto da série, muito. E continuo a achar que fez um excelente trabalho a combater a homofobia.

    E não digo que seja este o teu caso, mas surgiu um moralismo no meio LGBT que acredito que ajuda a distorcer certas coisas à nossa volta… mas penso ser o normal dentro da reação de um grupo oprimido desde sempre que, finalmente, ganha voz e reage…. Mas é melhor que seja assim.

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