Na Assembleia Discutiu-Se O Direito À Identidade De Género (mas não só)

Ontem assisti à discussão que se deu na Assembleia da República sobre os projectos de lei do Partido Socialista (PS), Bloco de Esquerda (BE) e PAN em torno da autodeterminação de género, mas também da defesa dos direitos das pessoas Intersexo. Foi com alguma perplexidade que assisti a claros problemas de argumentação por parte de algumas pessoas que intervieram. Porque, para além da minoração do tema em debate, alimenta o estigma que as pessoas Trans e Intersexo vivem no seu dia-a-dia. Quem no Parlamento nos representa, mesmo que em discordância, deve-nos a obrigação de um cuidado especial quando trata assuntos destes. Não é, pois, razoável que, durante uma discussão séria sobre a identidade de género, seja feita associação direta a hipotéticos criminosos. Mas já lá vamos.

A discussão teve início com o depoimento do ministro-adjunto Eduardo Cabrita que tornou claro como a iniciativa proposta pelo PS “reflecte sobre a reflexão feita no âmbito europeu, do Conselho da Europa das Nações Unidas” e que, como tal, “consagra a salvaguarda do direito à identidade de género e a protecção contra qualquer forma de discriminação na educação, no acesso à saúde, no mundo do trabalho.”

Seguiu-se a deputada Sandra Cunha do BE que, num tom mais pessoal, falou que “podermos levantar-nos todos os dias e sentirmo-nos bem na nossa pele, podermos ser quem somos sem constrangimentos parece coisa simples, mas não o é para toda a gente. Não o é para todas aquelas pessoas cuja identidade de género não combina com o sexo com que nasceram.” E clarificou que “fazer depender de terceiros a definição daquilo que se é e que na realidade só a própria pessoa o sabe, o sente e o vive no mais íntimo do seu ser. Esta patologização, esta etiqueta de doença mental, é promotora de estigmatização social inaceitável e de um sofrimento cruel e desnecessário.”

Continuando num discurso de proximidade, a deputada recebeu os primeiros aplausos ao confessar que “sabemos que a consciência de que se nasceu no corpo errado acontece na maior parte das vezes durante o crescimento e no desenvolvimento dos jovens. Etiquetá-los de doentes mentais é retrógrado, mas é sobretudo de uma crueldade incompreensível.” Porque “falamos de jovens que após anos de sofrimento confessam aos pais que quando tomam banho tomam banho de olhos fechados porque não suportam o seu corpo. Falamos de jovens que não se olham ao espelho porque não reconhecem o seu corpo. Falamos de jovens que não vão à piscina ou à praia com os seus amigos porque não ousam despir-se em frente a eles. Falamos de jovens que vivem excluídos e escondidos da sociedade, sozinhos. Falamos de jovens que tantas vezes tentam o suicídio. Falamos de jovens e falamos também daqueles jovens que o conseguem. Falamos também pelas famílias, muitas estão aqui nas galerias hoje.” E, por fim, rematou: “Cabe-nos a nós ter a coragem, a capacidade e a empatia suficientes para acabar com este sofrimento.”

Seguiu-se o deputado André Silva do PAN que, falando sobre a lei de identidade de género atualmente em vigor, recordou que esta veio, no entanto, “também trazer burocracias desnecessárias, preconceitos institucionalizados e uma junção da esfera clínica legal que não é mais desejada. Os relatórios médicos, a definição de uma lista de profissionais habilitados a assiná-los, o pedido de uma segunda avaliação independente e, em muitos casos, consultas atrás de consultas em que é o médico a decidir, com base nos seus próprios critérios individuais que determinada pessoa é mais homem ou mais mulher; ou se ainda não é homem ou mulher suficiente.” Considerando todos estes passos “violências e barreiras desnecessárias“, porque “todos nesta sala sabemos quem somos e não precisamos que alguém o ateste por nós.”

Já a deputada Rita Rato, do PCP, fez um apanhado dos processos que as pessoas Trans eram obrigadas a passar, relembrando que dantes “eram obrigadas a colocar o Estado Português em Tribunal e alegar um erro na atribuição e registo da sua identidade“. Sobre crianças Intersexo, referiu que com as novas propostas existe uma proibição de “cirurgias que não sejam medicamente necessárias a crianças e bebés Intersexo, ancorando-se em recomendações internacionais, prevendo que apenas se devam realizar de imediato as intervenções cirúrgicas ou farmacológicas necessárias a eliminar riscos para a saúde, deixando as outras para o momento em que esteja definida a identidade de género, sendo que neste caso isso só pode ser feito com autorização dos representantes legais.” A deputada garantiu ainda que “o PCP está disponível para fazer este trabalho“.

Foi na intervenção seguinte que senti uma profunda falta de respeito com a forma como a deputada Vânia Dias da Silva, do CDS, expressou a sua oposição às propostas de lei ali discutidas. Depois de acusar de “ligeireza” com que o Bloco e o PAN trataram o assunto, chamando-lhe de “ideologia apressada“, depois de acusar o PS de se vergar perante a “agenda radical da esquerda“, a deputada questionou os presentes: “Acham mesmo que um menor tem capacidade para decidir mudar de nome e de sexo de forma praticamente irreversível? Acham mesmo que um menor tem capacidade para tomar tal decisão? Acham mesmo que um menor que não pode votar, conduzir, fumar, beber tem maturidade suficiente para saber o que quer fazer nesta matéria para o resto da vida? Acham mesmo razoável não ser preciso comprovar um problema de identidade de género para se mudar de sexo e de nome? Já pensaram bem nas consequências do que propõem? O que dirão quando um qualquer criminoso inventar que tem um problema de identidade de género – inventar, e pode inventar – chegar ao registo e mudar o sexo e o nome?

A ligeireza que Vânia Dias da Silva aponta é, na realidade, usada descaradamente nos seus próprios argumentos. É de uma ignorância e irresponsabilidade notáveis quando levanta questões que, em vez de espelhar a empatia por aqueles e aquelas que sofrem todos os dias o que é viverem segundo normas de género que lhes são impostas, mostram um total desconhecimento da realidade das pessoas Trans e, pior, indo mais longe ainda, tem a mesquinhez de associar os problemas destas pessoas com esquemas de criminosos. Uma absoluta vergonha que só alimenta o estigma que estas pessoas vivem no seu dia-a-dia. Não se trata aqui de oposição, contraponto ou discordância, trata-se de, ao menos, não alimentar o monstro do estigma que pessoas Trans são obrigadas a enfrentar todos os dias. Este nível de argumentação é, realmente, cruel e desnecessário.

A deputada Isabel Moreira, do PS, respondeu de seguida à argumentação da sua colega, relembrando, mais uma vez naquela tarde, que “estamos a falar de direitos fundamentais, está em causa o direito à identidade de género, o direito destas pessoas que estão nas bancadas“, convidando a deputada anterior a olhar-lhes de frente. “As pessoas sabem quem são e sabem o que são. O paradigma da patologia tem que ser substituído pelo paradigma da autonomia.” Remeteu ainda para a urgência de todo este processo, porque “estamos a falar da pessoas vítimas das discriminações mais duras, pessoas altamente incompreendidas e alvos fáceis da ignorância ativa.” E, em contraponto do que foi ouvido anteriormente, Isabel Moreira afirmou que “quem está atento às exigências de uma sociedade aberta, visionada pela nossa lei fundamental, quem está atento à consensualização internacional sobre a configuração concreta de direitos fundamentais sabe que as pessoas Trans têm o resto das suas vidas à espera de respeito.”

Já a deputada Ângela Guerra, do PSD, parece ter seguido a mesma lógica do CDS, não lhe parecendo as iniciativas ali discutidas a defesa dos direitos humanos, mas antes “a implementação de uma agenda fracturante, de transformação social na qual estamos absolutamente convictos que a maioria dos portugueses não se revê“. Aliás, a deputada crê que toda esta discussão não passa de um desviar de atenção, “ou não fossem eleições autárquicas, ou não estejamos a duas semanas de iniciar o debate orçamental“. É este o início do seu discurso que apenas minora as vidas das pessoas Trans e Intersexo numa batalha de mero palco político. Não se demitindo do debate, explicou que, “apesar de não serem exigidos quaisquer atos médicos prévios ainda assim num processo e numa decisão com a dimensão que hoje discutimos, é para nós fundamental que exista uma prova científica, cabal e credível, um relatório elaborado por uma equipa clínica multi-disciplinar que ateste e garanta a vontade inequívoca do requerente que exija esta mudança.” Ou seja, manter-se tudo nos mesmos moldes atuais. Mas a deputada, pegando numa manchete de jornal, questionou: “Que sociedade em que os senhores preconizam que jovens não têm idade suficiente para votar, conduzir ou beber álcool, mas acham justo que sejam confrontados os seus pais com processos judiciais por não autorizarem um filho menor a realizar uma intervenção que alterará definitivamente a sua vida?

Acontece que a manchete em que se baseia a deputada já tinha sido desmontada na véspera e tinha sido dada como falsa pel’Os Truques. Ainda assim, o deputado do Bloco, José Soeiro, respondeu diretamente considerando “totalmente falsa [a ideia] que a proposta do Governo no projecto do Bloco preveja que os filhos menores possam processar os pais. Isso é um disparate que nem é permitido pela lei.” O deputado recentrou novamente a discussão no que estava ali em jogo: “Este não é um debate sobre notícias falsas, opções ideológicas ou os fantasmas da direita. É um debate sobre pessoas concretas, sobre condições para minorar o sofrimento. É um debate sobre o respeito pela dignidade, sobre autodeterminação, sobre direitos humanos, sobre o direito à identidade de género e certamente este Parlamento vai, mais uma vez, dar um passo no sentido pelo respeito das pessoas e pelos direitos humanos.”

Heloísa Apolónia, d’Os Verdes, reforçou a ideia que “aquilo que está hoje aqui em causa é uma matéria de igualdade de direitos“, pois trata-se de “garantir o respeito da sociedade pela identidade de cada pessoa e isso não pode ser a sociedade ou terceiros a determinar, é a própria pessoa que sabe o que é.” Rematou, por fim, que “se trata do direito a que uma pessoa possa ser aquilo que ela efetivamente é e que não a obriguem a ser o que efetivamente não é. Isto não é uma questão menor.”

E não podia concordar mais.