Entrevista A Célio Dias: “Nunca Permiti Que Alguém Fizesse Troça Daquilo Que Sou”

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Este foi um dia especialmente inspirador. Quem me conhece sabe que não uso este tipo de afirmações habitualmente e – em dias menos bons – sou até capaz de revirar os olhos quando leio aquelas frases-feitas de motivação. Mas hoje não sinto qualquer problema em afirmar que foi um dia inspirador. Dirijo-me para o Bairro do Pica-Pau Amarelo, tenho plena consciência que não passo por lá há pelo menos década e meia e que todas as histórias que ouvi – os despejos, a violência, a droga – me moldaram a perceção ao ponto de sentir um nervoso miudinho. Vou encontrar-me com o atleta olímpico Célio Dias para falarmos um pouco sobre a sua experiência desde que se assumiu homossexual, a primeira vez que aconteceu com um atleta do seu gabarito em Portugal. A sua motivação e disponibilidade obrigam-me a enfrentar os meus próprios preconceitos. Vejo velhos e jovens, procuro sinais que justifiquem a minha saída dali. Quão fortes somos quando enfrentamos os nossos próprios preconceitos? Valerá isto a pena?

São questões que se desvanecem no momento em que vejo o Célio. Ao longe trocamos um olá com as mãos. Ao aproximarmo-nos vejo o seu passo certeiro, um porte atlético e um olhar quente. Automatica e naturalmente começamos a falar e a dirigirmo-nos para um café. “Vais conhecer os meus pais, estão lá”. Pelo caminho, pouco mais de 100 metros desde a sua casa, cruzámo-nos com várias pessoas, uma jovem que o Célio cumprimentou ao longe mal a viu e trocaram uns beijos, logo a seguir um amigo abraçou o judoca – “Grande Célio!” – e, mais à frente, duas senhoras com muletas trocaram beijinhos com ele. Em todos os casos fizeram questão de me cumprimentar, sem rodeios, simples e sincero. E eu a eles e elas.

Entrámos no café e a um canto estava a mãe e o pai do Célio, fui apresentado e trocámos passou-bens. “Então esta entrevista é para o quê?”, perguntou a mãe. “É para um site de temática LGBTI”, respondeu o filho. “Ah, boa!” O meu sorriso abriu-se naquele instante, estava a entrar num mundo em que a família e as amizades são o pilares de uma pessoa. E ali estavam elas, interessadas e atentas ao que aquele rapaz tornado ícone da população LGBTI portuguesa há menos de duas semanas vivia. E o Célio vivia, com elas.

Sentámo-nos noutro canto do café, as pessoas não deixavam de por ali passar. Em nenhum momento houve uma hesitação, um sussurrar, estávamos ali para falar da importância que tem um atleta olímpico – ali diante de mim, olhos nos olhos – se assumir homossexual e toda a gente sabia. Não havia ali espaço para o preconceito.

 

Que importância teve a saída do armário na tua vida nestas quase duas semanas?

Primeiro que tudo é um grande prazer estar aqui sentado a conversar contigo, porque sinto que, enquanto figura pública, tenho o dever de fazer melhor e diferente para a construção de uma sociedade mais saudável. Com a devida educação, sinto que possa tornar-me num ativista consciente e responsável, fazer a diferença e levar jovens a sentirem-se confortáveis a saírem do armário. Na verdade não sinto que saí do armário, foi algo em mim natural, uma resposta que dei a um jornalista do jornal Record e foi algo que possível porque o jornalista estava de facto interessado na minha história e em trazer o melhor de mim. E o melhor de mim foi a minha saída do armário. Mas não considero que tenha vivido dentro do armário, porque nos últimos cinco anos da minha vida foi sempre algo com que lidei bem. A minha família sabe, os meus pais sabem, foi sempre algo muito natural.

Assumi para mim como gay aos 18 anos e essa foi a minha experiência mais dura, pois estava no armário, mas aos 20 decidi contar à minha família e aos meus amigos e foi nesse momento – tenho hoje 25 anos – que sinto que saí do armário e não agora. Esta foi uma consequência da minha vivência enquanto jovem LGBTI.

Na entrevista que deste ao Record falaste nos problemas que tiveste e que tão corajosamente assumiste – nomeadamente a doença mental, que é ainda hoje um tabu. Achas que a tua saída do armário ajudou-te a ultrapassar os problemas?

Tenho tido uma maneira muito particular de lidar com os problemas, vejo os problemas da minha vida encarando-lhes as soluções que nos proporcionam, momentos de crescimento e de avanço na nossa vida. Sempre vi os problemas como uma razão para a minha existência, os problemas existem porque eu existo, ser humano é ter problemas e por isso há que encará-los de frente. Neste sentido, foi bastante claro para mim que a minha saída do armário foi uma consequência desta resolução de problemas. Sempre fui um indivíduo bastante introspectivo e isso permitiu-me enfrentar os problemas com outra abordagem.

No meu crescimento tive uma pessoa muito importante, a professora Joana Rigato, que contribuiu para que tivesse um pensamento mais livre, denso e profundo e isso ajudou-me imenso. Muitas pessoas não sabem lidar com os problemas porque têm medo de pensar neles e quando ultrapassamos essa barreira começamos a ver soluções. Por isso, sempre vi o meu coming out como um empoderamento para poder ajudar outras pessoas, acredito muito em Deus e acredito que nascemos com uma missão e a minha missão, sem dúvida, é inspirar outras pessoas e levar-lhes um testemunho.

Ontem quando saí da entrevista no programa A Tarde É Sua recebi uma mensagem de uma mãe cujo filho está a sofrer um surto psicótico a dizer que a minha história é um motivo de esperança para ela e que acredita agora que o filho poderá superar a situação. No fundo é isto que eu quero, levar às pessoas uma mensagem de esperança e de conforto.

Por vezes abordam-me sobre a minha Fé. Sou católico e perguntam-me porque existe o mal se Deus existe. Para mim não há contradição, o mal existe pela natureza humana, mas esta é livre e podemos escolher o nosso rumo. O mal existe pela falta de Amor e como futuro ativista LGBTI gostava de levar precisamente esta mensagem às pessoas.

Sendo católico e gay, como lidas com as posições que a Igreja Católica defende sobre a população LGBTI?

Vivo atualmente um momento de Fé. Sempre fui crente, desde muito pequeno senti curiosidade em conhecer a mensagem de Jesus Cristo e o que ele tem para nos oferecer. Quando me descobri homossexual houve um confronto dentro de mim em que, por um lado, há mensagens que a igreja transmite com as quais não me revejo e, por outro lado, perguntei-me como pode um gay integrar a igreja católica.

Fazer a diferença por dentro, portanto…

Sim, mas isso levou-me a um afastamento inicial. Mas este ano, antes de ir aos Mundiais de Judo, senti uma grande vontade de ir ao encontro de Deus e ir a Fátima. Foi uma vontade que não sei explicar, mas quis seguir o meu instinto e fui a Fátima. Desde esse dia que sinto Deus muito presente na minha vida. Foi nessa altura que percebi que não tem que haver uma contradição, porque devemos saber distinguir a espiritualidade da religião. Enquanto a espiritualidade é algo que te liberta, que te coloca em comunhão com o outro, já a religião é dogmática e te prende, mas utilizo-a para desenvolver a minha identidade espiritual.

Tudo o que a religião não aceita, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, prende-se com a sua parte dogmática, mas Deus diz-nos que nos aceita como somos e por isso acredito que possa fazer a diferença, porque sou católico e gay, porque tenho outra vivência. Se eu sair da igreja vão lá ficar apenas as pessoas preconceituosas e elas, ao contrário de mim, não causam mudança. Sinto por isso uma responsabilidade acrescida ao permanecer dentro da igreja precisamente para promover essa mudança.

 

Célio Dias coming out Gay LGBTI Trend me too | Days of Light and Fights | Treino de Judo

Pegando nesta ideia da espiritualidade, queres hoje tornar-te num ativista LGBTI, consideras isso uma espécie de chamamento?

Acho que é algo natural e sempre me vi como alguém que tem uma mensagem para levar às pessoas. Estou a constituir a minha empresa que se chama “Days of Light and Fights” cujo lema é “It’s All In You” (“Está tudo em ti”). E é essa a mensagem que quero transmitir. Sócrates escreveu uma frase que gosto particularmente: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Deus e o Universo”. Se não encontrares respostas dentro de ti, não as encontrarás em parte alguma. Ou seja, conhece-te melhor e isso ajudará a ultrapassares as tuas dificuldades.

Enquanto jovem precisei de uma referência LGBTI na minha vida e não tive, tal como não tive referências de alguém que tenha crescido num bairro social ou que fosse negro. Mas consegui que estas minhas características fossem unas e me tornassem naquilo que sou. Por isso sinto este chamamento de passar a mensagem a jovens – não só LGBTI – como todas as restantes pessoas, de forma a podermos mudar a sociedade. Porque o preconceito existe e continuará a existir enquanto virmos duas mulheres a beijarem-se na rua ou dois homens a cuidar da sua criança e isso ser visto como um gesto perfeitamente normal.

O desporto pode ser um espaço especialmente cruel para pessoas LGBTI, como foi viver dentro do armários naqueles primeiros anos?

O desporto tem tanto de cruel como de salvador. O desporto dá vida e, como disse Nelson Mandela, ri perante todas as formas de discriminação. Portanto, sempre vi o desporto como uma componente da minha vida. Enquanto homem gay, o judo permitiu-me tornar-me numa pessoa corajosa através das vitórias e medalhas. Por ser um desporto de luta, por estares em confronto com outro homem, senti que vencia os meus medos nos combates.

Sei da existência de situações de discriminação no desporto, mas no meu caso em particular foram poucas, pontuais apenas e soube lidar com elas, porque não permiti nunca que alguém fizesse troça daquilo que sou.

Neste momento és o único atleta português olímpico fora do armário e – aceita-o! – tornaste-te num ícone para a população LGBTI em Portugal e um exemplo para milhares de jovens [risos], sentes esse carinho e – arrisco-me a dizer – essa responsabilidade?

Sim, não tenho medo da responsabilidade e se as pessoas me vêem como um ícone é algo que eu tenho que abraçar sem medo. Tenho sentido um enorme apoio quer por pessoas da comunidade como fora, são incríveis os dias que tenho vivido, porque me têm permitido ver que existe esperança, a sociedade está pronta para mudar e nunca teve tão permeável à mudança.

Quero acreditar que estamos em condições para que daqui a vinte ou trinta anos – não direi vencer em absoluto o preconceito, mas que as pessoas possam ter as suas vidas de forma integrada na sociedade. E pelo carinho que tenho recebido percebo que as pessoas entendem que o trabalho que faço é importante dentro e fora dos tapetes.

Como falámos há pouco, o desporto pode ser uma enorme plataforma de união, pretendes continuar em frente?

Faço tudo por uma razão, mas ainda não consegui perceber a razão por que faço judo. O judo é uma filosofia de vida e é uma forma de arranjares um maior respeito pela condição humana, porque é extremamente difícil treinares durante quatro anos para um objetivo e depois chegares ao Jogos Olímpicos e perderes para um atleta menos cotado que tu. Sinto que o judo faz parte da minha vida e da minha identidade. Na minha personalidade tenho a faceta de guerreiro que me faz enfrentar os desafios de frente. Não sei o que seguir em frente significa – e isso é assustador -, mas essa é a beleza do judo, apenas sei que vou continuar.

Tens alguma mensagem que queiras enviar a um ou uma jovem desportista que nos vá ler e que possa estar a confrontar a sua orientação sexual, por exemplo?

Sim, que se deixe apaixonar pelo desporto, porque o desporto é a resposta, é a ferramenta de resiliência que nos permite ultrapassar todos os problemas e se esse ou essa jovem ler no seu dia-a-dia o que o desporto tem para transmitir, vai entender que a sua orientação sexual é algo que faz parte da sua identidade. Eu sou o Célio Dias, sou homossexual e gosto de laranjas, faz parte de quem eu sou. Se nos deixarmos envolver pelo simbolismo e pela magia a que o desporto está associado, este permitirá termos um melhor conhecimento sobre nós próprios. Se conseguirmos esquecer as coisas mundanas – o dinheiro, as medalhas, a fama – vamos conseguir perceber que o desporto fala a linguagem da humanidade e do amor e ensina-nos sobre união. É esta a minha mensagem, sem dúvida.

E acho que assim terminamos, deixa-me só desligar aquiiii…

No final, desligado o gravador, continuámos conversa naquele recanto tornado nosso durante aquela hora do café. As pessoas continuaram a ocupar aquele espaço, delas, nosso. Não houve pressa, apenas a persistências das palavras, no ar de numa folha de papel. Quando por fim saímos do café despedimo-nos do pai do Célio que agora se aquecia por uma nesga de sol deste dia nublado na esplanada. “Sabes, tenho muita sorte nos pais que tenho. Com a idade que têm lidam com tudo isto de uma forma que nem eu sei se conseguiria lidar fosse eles. Tenho muita sorte, muita sorte mesmo“. O Orgulho sentido pelo Célio estende-se a todas estas pessoas, que o cumprimentam, que o acarinham e essa, para lá de tapetes olímpicos, é provavelmente a maior vitória que ele atingiu. Despedimo-nos com um abraço. Sim, temos sorte, muita sorte mesmo.

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O mundo vai ser melhor quando a sociedade entender a profundidade da componente humana de que o desporto nos fala. Está tudo em ti! (Célio Dias)

 

Fotografias por Fábio Caetano.

Obrigado ao Célio pelo contacto 🙂

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