Há já algum tempo que fala de diversidade e representação LGBT e de outros grupos marginalizados na ficção. Existem quase tantas opiniões diferentes como pessoas envolvidas no debate, e torna-se um bocado difícil discernir alguma solução ou meio-termo para os problemas inerentes à ficção atual – além de que se perde de vista a questão principal: porque é que a diversidade na ficção é importante?
O que se apresenta aqui não é uma visão única ou inovadora para a solução dos problemas da ficção atual. É só uma tentativa de dar a minha opinião, numa perspetiva da dicotomia diferença/igualdade – que vale tanto como a opinião de qualquer outra pessoa.
Eu sei, não dou grandes esperanças para o que se segue. Mas passemos ao que interessa.
O enriquecimento das histórias
Antes de falarmos do impacto social (positivo ou negativo – já lá chegamos) da diversidade na ficção, gostaria antes de me focar no que é que isto significa para as próprias histórias.
É evidente que não podemos separar um trabalho de ficção do seu contexto sociocultural: ainda que também seja um grande debate se a ficção deveria ter “agendas”, servir propósitos éticos ou ser permeada de crítica social, a verdade é que sempre teve, sempre serviu, sempre foi.
A ficção não existe num vácuo, e as ideias em que se baseiam as histórias não surgiram por obra e graça. Não é coincidência que o Império (e, mais recentemente, a Nova Ordem), os vilões do Star Wars, sejam tão fortemente codificados com imagética nazi. Não surgiram do ar os temas da escravatura, do preconceito e da autoridade falha que são explorados na Saga Harry Potter. A ficção espelha a realidade e ajuda-nos a compreendê-la; ajuda-nos a explorar os vários ângulos de um problema, a perceber aquilo que desejamos e aquilo que tememos.
Portanto, diria eu que faz todo o sentido que a ficção venha a refletir o panorama sociocultural da atualidade; não só os problemas que os grupos marginalizados enfrentam, mas também as suas narrativas únicas.
E falando de “narrativas únicas”, há outra questão que é pertinente referir: as histórias fazem-se de diversidade, de diferença. Aliás, toda a arte se faz pelo fugir à norma.
E, no entanto, em miríades após miríades de estudos estatísticos que saem sobre as características de personagens em filmes, livros e jogos, invariavelmente estes apontam para a maioria ser constituída por personagens masculinos, brancos, heterossexuais e sem deficiência física. Há um uprising nas redes sociais quase todas as vezes em que é introduzida uma personagem LGBT numa franchise conhecida, num jogo, num filme, num livro – como se a sua mera existência fosse política, como se não existisse nenhuma razão para haver uma personagem LGBT numa história de ficção.
E isto não são agendas ou vendetas, são factos. Verdades estatísticas, fenómenos noticiados. O que importa, a partir deste ponto, é o que fazemos com estes dados.
O storytelling faz-se pela metamorfose de conceitos, pela subversão de tropes e clichés, pelo “peguei numa premissa assim e fiz uma coisa assado”. Uma obra é constituída pelos seus diferenciais em relação a outras obras do género, por onde se posiciona no status quo. Quando se fala dos méritos de uma história, fala-se principalmente do que é o que a faz ser diferente.
As histórias que não têm nada de novo a oferecer acabam por ser vistas como dispensáveis. Vou-me abster de referir nomes em específico porque a internet é tramada, mas já é norma a crítica rolar os olhos a autores que estão há anos a escrever a mesma premissa do “professor universitário que é chamado para investigar um crime, que é na verdade uma conspiração com implicações catastróficas a níveis mundiais”, ou até “a trilogia de três mulheres de classe média, cada uma com o seu respetivo namorado, que passam quinze capítulos em introspeção para resolverem os seus problemas emocionais simplesmente por pensarem neles”. A malta acaba por se cansar.
E uma das queixas mais frequentes que ouço entre os storytellers é a ladainha do “todas as histórias já foram contadas”: todas as premissas já originaram todas as histórias, tudo o que havia para dizer já foi dito.
Permitam-me discordar. Milhares de histórias podem partir da mesma premissa, do mesmo conceito – mas basta que estas bases sejam vistas de um ponto de vista diferente para que esta história se torne, ela mesma, profundamente diferente. Verdadeiramente nova.
O conceito do coming of age, por exemplo: a narrativa da transformação da criança num adulto, através de uma série de acontecimentos que transformam a sua visão do mundo. Temos milhentos coming of age parecidos na ficção, isso é inegável: de rapazes brancos de classe média que descobrem que a vida não é o mar de rosas que eles pensavam.
Shift the focus: então e o coming of age de um puto latino gay que sabe perfeitamente que a vida não é um mar de rosas? Temos assim uma nova premissa, um novo ponto de vista e, com isto, o potencial para uma nova história.
Perdoem-me o sarcasmo, mas quem diria que deixar que personagens de diferentes culturas e grupos marginalizados com modos de experienciar a sociedade muito particulares, tenham agência e voz ativa numa história, dá uma lufada de ar fresco às narrativas ditas “sobreusadas”?
Realmente, quem diria?
Só que (aqui arrisco-me àquela falácia do strawman, mas interpretem isto apenas como um antecipar das questões possíveis) há quem me possa dizer que só se pode falar neste tipo de contribuições diretas se estivermos a falar em ficção que se passe na nossa realidade, e onde este tipo de estruturas sociais e culturais faz sentido. Num mundo de fantasia, nada disto se aplica.
Pois não. Mas num mundo de fantasia, qual é a desculpa para não haver pessoas de diferentes etnias, sexualidades, expressões de género e desabilidades? Os mundos criados de raiz vivem precisamente do quão ricos conseguem ser em nuance, detalhe e diversidade. Se o vosso mundo tem dragões, duendes, monstros e feiticeiros, mas depois vai-se a ver a população humanoide e só há brancos heterossexuais (só que, atenção, uns têm orelhas bicudas e outros não)… o vosso universo ficcional podia ser melhor, não?
E mesmo na criação destes universos ficcionais, existem milhares de expressões culturais pelo mundo inteiro que podem enriquecer o vosso mundo de fantasia – para não ser o milésimo “era medieval europeia mas tipo, com dragões” que vemos na ficção.
E não, isto não é uma boca ao Game of Thrones. O Game of Thrones também tem zombies.
O impacto sociocultural
Agora, é inegável que a boa – e isto é uma palavra-chave – boa representação tem um impacto social positivo.
A interação entre subgrupos numa sociedade é um tema que não carece de estudos. Em 1954, o psicólogo Gordon Allport publicou The Nature of Prejudice, um livro que é considerado um marco no estudo destas relações intergrupais, onde argumentava que o afastamento entre grupos de uma sociedade era criado e agravado pela ignorância destes grupos em relação uns aos outros. Face a esta ignorância, havia a criação de estereótipos, que culminavam em discriminação e xenofobia. E a solução para esta tensão entre grupos partia do dar a conhecer a um grupo as semelhanças que partilhavam – de lhes mostrar que não se trata de “outros”, mas, no fundo, de iguais.
E não há maneira mais segura, manobrável e eficaz de mostrar isso do que a ficção.
Will and Grace, por exemplo, foi uma série revolucionária no seu tempo mesmo por apresentar a uma sociedade largamente homofóbica um homem homossexual como uma pessoa comum, com um trabalho e uma vida pessoal, quebrando assim os estereótipos que existiam. E até mesmo obras como o Mysterious Skin de Scott Heim, histórias que chocam por exporem os problemas pelas quais pessoas marginalizadas passam, servem não só para alertar para as consequências desta discriminação, mas também para mostrar que pessoas do out-group também têm problemas e dificuldades e só querem ter uma vida feliz – criar pontos de contacto entre grupos, mostrar que há semelhanças muito fundamentais.
E todas as histórias que escolhem ter protagonistas pertencentes a grupos marginalizados que são apresentados como pessoas tridimensionais, com sonhos, objetivos, medos e inseguranças, contribuem para esta aproximação. A empatia é uma coisa muito poderosa, e uma pessoa de um grupo maioritário sentir empatia por uma personagem fora do seu in-group é um largo passo para a desconstrução de estereótipos e a efetiva aproximação destes grupos.
Por outro lado – e é aqui que entra a má representação – quando as personagens de determinado grupo social são reduzidas ao estereótipo a este associado, isto vem apenas dar força a esse estereótipo.
Por fim, está claro, vem o argumento da normalização: uma coisa que é apresentada consistentemente como normal, em meios com tanto poder de difusão de ideias como a ficção mediatizada e em meio digital, acaba por ser normalizada. Se grupos marginalizados são consistentemente apresentados como pessoas, e não caricaturas, e as suas diferenças como normais, o status quo vai acabar por acomodar estas noções.
No fundo, a diversidade na ficção é tão importante, que uma pessoa até se pergunta porque é que há pessoas tão veemente contra ela. E a resposta terá de ser, nas palavras de Gordon Allport, porque são fruto de uma mente preconceituosa, que se recusa a espreitar para fora do seu in-group e das suas ideias pré-concebidas do Nós e o Outro.
Felizmente, a diversidade tem ganho muita tração no storytelling, de maneiras cada vez mais trabalhadas, e não mostra indícios de parar. É voltarmos os olhos para onde esta boa ficção está, e darmos o nosso apoio àqueles cujo trabalho não só é bom, como é socialmente relevante.