Nos tempos da reação imediata e pouco pensada sou muito favorável a que alguns de nós levem o seu tempo a ponderar um assunto antes de produzirem opinião sobre ele. Henrique Monteiro publicou um artigo que poderia ter sido um exemplo disso, aparecendo dias depois da primeira questão sobre a qual se debruça ter explodido nas notícias e redes sociais. No entanto não, o que acabou por publicar foi uma mistura de coisas mal amanhada em que não consegue analisar bem nem um dos pontos que refere e mal se entende a ideia geral que subjaz ao texto. Senão vejamos:
1 – Não, “a visão comunitária, solidária, e fraternal das sociedades” não se ressente da actividade de “tribos” e grupos que lutam por “causas” porque a sociedade não tinha para com eles qualquer visão comunitária ou fraternal antes deles pugnarem por ela. Eram todos anormais e/ou coitadinhos.
O que o autor vê como ressentimento é na realidade a sociedade a tentar encaixar a necessidade de ser uma comunidade solidária e fraterna incluindo os interesses de toda a gente em vez de só pensar de maneira simples no interesse dos do costume. Este novo equilíbrio constrói-se tendo em conta as necessidades e preocupações de todos e isso gera atritos e dificuldades que vão sendo ultrapassadas de várias maneiras. A tensão é sinal de que as comunidades e as identidades começam a ter impacto geral, deixaram de ser invisíveis ou desprezáveis.
A política identitária – que é o que o autor parece querer criticar aqui – não é um caminho perfeito, pode ser avaliada e criticada e podem até definir-se excessos em alguns pontos – a nível de eficácia eleitoral por exemplo -, mas deve ser analisada tendo em conta este caminho em que estamos e o ponto do qual partimos.
2 – Já foi aqui neste espaço explorado melhor do que eu poderia como a abordagem à notícia do ataque homofóbico deveria ter sido mais cuidada. Resta-me lembrar, em jeito de resposta ao HM, que o “mundo cigano” é extremamente heterogéneo e que, habitualmente, quando alguém caracteriza todos os ciganos como X ou Y, está a ser ou ciganófobo ou só ignorante. É daí que vem o problema. De presumir que todos correspondem à ideia que se tem de alguns. Não conseguir perceber isso depois de toda a discussão que houve e depois dos dias que o autor teve para pensar no assunto deveria surpreender-me.
Estudar homofobia dentro de comunidades ciganas fará todo o sentido, também a estudamos noutras e temos que a combater em todas as frentes, mas não vamos ajudar com caracterizações forçadas e generalizadas. Evitar o preconceito é essencial para fazermos uma boa análise das situações e esta não é exceção, caso contrário acabaremos sempre a ver o que nos é confortável, o que encaixa na ideia que já tínhamos, em vez de vermos tudo o que de facto levou ao que aconteceu.
3 – Daqui o HM salta no trampolim e decide falar sobre abate de animais domésticos. Quanto a isto, lembrar só que não é a proibição do abate de animais domésticos que cria o problema de animais domésticos a mais. Eles já existem nesses números, só estamos a mudar a forma de resolver a questão. Temos que criar infraestrutura para lidar com isso? Sim. Devia ter sido feito antes ou simultaneamente? Sim. O facto de ninguém se ter preocupado com isso mostra bem que nem trazer o tema para a luz do dia fez os nossos representantes preocuparem-se como deve ser com a questão. Foi só aprovar “o que deu” e depois logo se vê, o que gera problemas graves que não podemos ignorar – aí estaremos de acordo.
4 – Vou abster-me de comentar a referência à eutanásia no parágrafo sobre abate de animais porque isso merece apenas insultos.
5 – Daqui HM decide mergulhar para a legislação sobre a entrada de animais de companhia nos restaurantes e claro que comenta o assunto como se a lei pretendesse tornar obrigatório levar os animais para os restaurantes. Caro HM, só se quis que quem quer levar os seus não se visse impedido de ir a tantos sítios, ninguém esperava uma avalanche de animais nem foi a necessidade de uma avalanche que motivou a lei. Já se sabe que vai continuar a haver quem não leve e quem prefira estar na esplanada e ainda bem. Pouco importa se se concorda ou não com a lei, chegado a falar no assunto, pelo menos que se aborde com seriedade. A ideia era haver mais escolha, não menos.
6 – Por fim o autor chega ao ponto que me parece ter sido a sua motivação para esta salgalhada. Diz ele que a importância crescente dada a estas questões leva a “aparecimento de cada vez mais causas populistas e o distanciamento cada vez mais grave dos cidadãos em relação à política“. Na verdade o HM podia ter escrito uma crónica só dirigida a este ponto. Há muito que se lhe diga e algumas discussões que valem a pena ter. Mas fica para já uma breve análise.
Se por um lado alguns gostam de associar a política identitária – aqui colada à preocupação com os animais nas ditas causas fraturantes se calhar – com a alienação de muita gente em relação à política no geral, vale também a pena lembrar os tantos e tantas que são trazidos à política ativa por encontrarem estas mesmas causas que tanto lhes dizem e que tanto impacto têm na sua vida. Vale também a pena lembrar que os populismos não nascem disto, são bem mais antigos e complexos do que a reação à política identitária. Há, isso sim, uma provável reação defensiva de quem se sente atacado por este tipo de política tão concentrada nas questões identitárias das tradicionais “minorias”. Mas isso é estimulante, não alienante. Se estes acabam por ser muitas vezes assimilados pelas candidaturas populistas isso deve ser uma preocupação real mas que não nos deve levar a desvalorizar as causas em si. Não consigo ignorar que este tipo críticas vem de quem fala de política e atualidade sentado no seu confortável sofá conservadorzinho de onde se tem só medo ou incompreensão em relação ao novo que abala a estrutura da bolha de sabão onde vive. E, sorry but not sorry, não vamos todos ficar quietos e calados para não fazer tremer a vossa bolhinha. Bem-vindos ao mundo real, estamos todos nele e cada vez mais de nós têm voz. A gente não morde (muito) and we have cookies.
Fonte: Imagem.