“Tens algo que me pertence”: por que Christine Ford somos todas nós

Christine Ford assédio violação

O dia estava livre de compromissos, o que é raro, e como o frigorífico estava vazio, decidi ir ao supermercado. Aproximo-me do conjunto de carrinhos e, sem pressas, começo a procurar uma moeda para poder destrancar um deles. Um dos seguranças do supermercado aproxima-se com uma daquelas moedinhas de plástico que substituem as verdadeiras. Sem dizer nada e aproximando-se um pouco mais do que seria preciso, inseriu a moeda na ranhura e ofereceu-me o carrinho piscando o olho. Agradeci, entrei no supermercado e coloquei os fones nos ouvidos sem pensar mais no assunto.

Ironicamente decidi fazer as compras enquanto ouvia o último episódio do Last Week Tonight with John Oliver. Digo ironicamente porque não conseguia deixar de reparar nas terríveis coincidências entre o caso da rapariga violada por dois homens na discoteca de Vila Nova de Gaia e o Caso Kavanaugh, nos EUA, que era o tema escolhido para aquele episódio. Se por aqui se discutia absurdamente o que podia ser considerado violação ou não, por lá, um juiz (acho que podemos utilizar o termo “ironicamente” aqui de novo e, talvez, várias vezes ao longo deste texto) continuava a ser considerado para o lugar de Juiz no Supremo Tribunal Norte-Americano, um emprego vitalício, apesar de estar a ser acusado de assédio sexual e violação por parte de três mulheres.

Apesar das coisas horríveis que ia ouvindo, sorri quando a senhora da caixa me disse bom dia, esperei pacientemente pelo elevador e foi sem percalço nenhum que levei o carrinho até à bagageira do carro estacionado no parque do centro comercial que ecoava de tão vazio que estava. Na verdade eu achava que nem estava ninguém comigo naquele
andar.

O programa já tinha acabado há muito mas eu continuava de fones postos a ouvir música. Alguém me tocou na anca. Sobressaltada virei-me e vi o segurança que me tinha dado a moeda para o carrinho. Tirei os fones dos ouvidos apenas a tempo de o ouvir terminar a frase “…sozinha?” Antes de responder o que quer que fosse olhei à volta. Não havia ninguém à volta e os carros estacionados eram tão poucos que duvidei logo que fosse aparecer alguém tão cedo. Estávamos junto a uma daquelas portas com letreiros que dizem “Acesso Privado” mas da qual ele certamente teria a chave. Ele era enorme e musculado. Então a matemática era simples: ele podia fazer o que quisesse.

Tens algo que me pertence.” – continuou ele. Estava obviamente a referir-se à moeda que ele tinha utilizado para destrancar o carrinho mais cedo mas perguntei-me imediatamente se ele teria feito a questão daquela forma propositadamente. Se ele conseguia perceber o quão assustada eu estava, o quão impotente eu me sentia. Afastei-me de repente. Fechei a bagageira do carro, entrei no lugar de condutor e arranquei ainda com o casaco vestido, os fones pendurados pelo pescoço e o cinto mal encaixado.

Fiz força para não me deixar levar pelos sentimentos de vergonha e raiva que normalmente seguem estas situações mas não demorou muito a sentir-me derrotada ao lembrar-me que, caso tivesse acontecido alguma coisa, o mais provável era que um juiz falasse mais alto que eu quando dissesse “Ele pode seguir em liberdade!”

A verdade é esta… Há um momento bastante particular na vida de uma mulher. É aquele segundo vital que separa a ideia de que a violação e o assédio são realidades distantes e reservadas às “outras mulheres” ou aos filmes ou à ficção, e nos apercebemos que faz parte do nosso dia-a-dia. A partir daí passamos a fazer as nossas rotinas, as nossas idas ao supermercado por exemplo, sabendo que isto nos vai acontecer a uma de nós. Se não for a mim, será à minha irmã ou à minha amiga. É só uma questão de saber o quando, numa espécie de roleta russa com piores probabilidades.

E se triunfantemente saímos à rua gritando por direitos iguais, e se todos os dias insistimos para que se eduquem as crianças e os adolescentes de uma outra forma, é um valente murro no estômago quando vemos escrito em letras oficiais que houve “sedução mútua” e “ocasionalidade”. Ou quando vemos que um homem, que provavelmente terá escrito muitos acórdãos semelhantes durante a sua carreira, a ascender ao Supremo Tribunal de um país que serve de referência para tantos outros. Ou quando sabemos que a eles, aos dois homens da discoteca e ao juiz Kavanaugh, não acontecerá nada. A sua vida irá continuar livremente. Ao contrário da minha, que chegarei ao supermercado sempre de moeda na mão, não vá alguém oferecer-se para ajudar.