O meu problema com Jonathan

Que fique desde o início claro, este texto não é sobre a série Queer Eye, que adoramos e regressou para terceira temporada. Este texto é, sim, sobre Jonathan Van Ness, por um lado, provavelmente o mais estereotipado dos Fab 5 como homem gay, por outro, aquele que mais se afasta daquilo que a sociedade espera de um homem. Sem rodeios, este texto é, sem dúvida, sobre o meu problema com Jonathan.

Entenda-se, com Jonathan e com qualquer outro homem – sim, especialmente se for um homem – que não se enquadra na expressão de género socialmente aceite e esperada. E isso é uma luta interna que, passados anos a conhecer, partilhar, viver e amar pessoas que não se enquadram nalguma caixinha, ainda persiste. Todos os dias.

Numa primeira impressão, há algo em mim que embirra com uma determinada pessoa, porque ela não é de uma determinada forma. Há algo em mim que, instintivamente, me trava a aproximação e me afasta dela, não lhe dando qualquer hipótese de ser. Diante de mim, ser.

Aqui há uns tempos perguntaram-me se ativistas não têm, acima de tudo, certezas pelo que lutam. Foi uma questão que me pareceu inicialmente fácil, afinal de contas, já escrevi, falei e travei lutas pelas certezas que tenho. Mas, numa segunda análise, apenas pude responder que, muito pelo contrário, são as dúvidas que me perseguem, dia após dia. E deparar-me com elas pode ser tão avassalador como frustrante. Mas a diferença, e é nisso que também acredito, é a importância de questionar-me sobre o que me corrói por dentro.

Aquilo que trago dentro de mim foi-me alimentado desde que nasci, pela sociedade, passando também por familiares e pelas amizades. Educam-nos a olhar para o lado perante a homofobia, o racismo ou a xenofobia. É esse o nosso estado instintivo, por defeito, aquele em que o silêncio é preferido ao confronto de preconceitos ou fobias.

E então cedo aprendemos a viver sem tocar em certos assuntos tabus, a desviar o olhar quando vemos alguém ser desagradável com um negro, a rir quando alguém minora uma mulher unicamente por ser mulher, a mostrar cara de nojo quando dois homens se beijam. E ai de quem nos perturbar esse silêncio, ai de quem nos obrigar a confrontar tudo isto que nos retirado durante a vida. Pior, ai se estas situações nos calham a nós. Ficamos sem saber como lidar e na dúvida reagimos como sempre vimos outras pessoas reagir: com medo e reprovação, com vergonha e hostilidade. Quando damos por isso deixamos de ser apenas quem observa e passamos a ser quem agride. Como mudamos de posição sem nos darmos conta? Quão consciente foi? Mais, quão fácil foi reutilizar todas as mensagens que nos transmitiram vida inteira e atirá-las àquele negro, àquela mulher, àqueles gays?

Preto/puta/paneleiro de merda!”, são frases de pês explosivos que vivem por vezes dormentes dentro de nós, mas com a facilidade de um atirador furtivo atingimos aquelas pessoas como uma rajada de sílabas que, uma a uma, as derruba e estilhaça. E quantas vezes sentimos o orgulho da vitória por as ver assim estateladas no chão? Quando nos transformámos em monstros?

Ao longo destes anos, e ainda que me debata internamente com estas questões, sei que quase sempre este é um reflexo do medo que se instala perante nós, o medo que uma pessoa tem de si própria. O ataque é, na realidade, uma autoflagelação, uma luta contra o que reconhecemos e odiamos em nós.

Esta é uma luta interna que, imagino, será para o resto da vida, venham mais esqreveres e ilgas e tudo o mais, e ainda hoje sinto-me desconfortável ao ver um homem assim ou assado na televisão. E tenho plena consciência que isso contraria tudo aquilo que defendo e isso é para mim absolutamente frustrante. Mas em vez de silenciar o sentimento, partilhei-o com pessoas próximas e, em última análise, fiz-me escrever estas palavras. Para o bem e para o mal aqui estão elas. E é para o bem que as quero usar.

Como fiz hoje então as pazes com o Jonathan Van Ness? Fi-lo da mesma forma que, antes dele, fiz com outros homens efeminados (seja lá o que isso for) e com tiques e com outra qualquer característica que me transportava mais uma vez para um mundo de medo, vergonha e silêncio. Fi-lo ouvindo-o, vendo-o, humanizando-o.

E então descobri o seu humor que me parte a rir sempre que vejo um episódio do Queer Eye. Ainda melhor, descobri o seu podcast, Getting Curious, em que através da sua over the top persona discute com especialistas temas como a importância das abelhas na biologia terrestre, como lutar contra o suicídio na juventude LGBTI ou impacto do Brexit na indústria britânica. Com tudo isto aprendi também a amá-lo, não só por todas as suas qualidades humorísticas ou pela qualidade do seu trabalho quer na televisão, quer no podcast, mas porque passei a amar vê-lo a ser ele mesmo, a viver a sua – e nossa – liberdade. Plenamente.

E por isso, quando me debato com estas dúvidas, pergunto-me o que poderei estar a perder se não conseguir ultrapassar todo este preconceito internalizado? Como me posso dar a essa reclusão quando vivemos numa sociedade que continua a denegrir e a violentar pessoas que não se adequam por completo às suas e nossas caixas? Seria perdê-lo e, no limite, seria perder-me. Porque a resposta àquela reação, àquele monstro que temos dentro de nós, acredito, pode ser verdadeiramente libertadora e, como consequência, orgulhosamente empoderadora. O que poderemos estar a perder quando nos damos ao luxo de não sermos genuinamente livres?

Obrigado, Jonathan.

Fonte: Imagem.