#culturaqueer é uma proposta de rubrica mensal com reflexões críticas sobre objetos artísticos que interliga cultura visual e literária e questões de género, sexualidade e feminismo. Escrevo com a intenção não de tornar as minhas palavras uma verdade absoluta, mas de proporcionar um diálogo saudável entre membros da comunidade LGBTQIA+ e seus aliados, funcionando também como uma plataforma de aprendizagem pessoal. Por isso, convido-vos a enviarem as vossas propostas de análise, sejam exposições, obras de arte, obras literárias, música, teatro ou filmes – sharing is caring! – ou a partilharem as vossas opiniões. Começamos?

#culturaqueer_2: State of de Gerard & Kelly: Dançando contra o preconceito
A performance art é uma modalidade de expressão que não é recente (tendo surgido por volta dos anos 60), mas que, depois de anos a deixar-me maravilhar com pintura, agora me fascina mais que a última. Na busca de entender a linguagem corporal utilizada nas performances e espetáculos de dança contemporâneos, decidi frequentar aulas de movimento contemporâneo. Nunca tive jeito para a dança, não esperava que agora o tivesse. Contudo, vou aprendendo umas bases, umas teorias, lendo umas coisitas e, a pouco e pouco, lá vou entendendo melhor o que o corpo diz.
Na bienal BoCA, grande evento com imensos espetáculos de performance, tive a oportunidade de assistir a State of, coreografado pela dupla Gerard & Kelly e com participação dos performers Ryan Kelly, Forty Smooth e Quenton Stuckey, no MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa. Na sua prática artística, os coreógrafos, Brennan Gerard e Ryan Kelly, utilizam a performance, escultura, vídeo e outros meios para levantar questões em torno de temas como sexualidade, raça, memória e queerness, muitas vezes explorando a sua própria intimidade enquanto casal.
Antes de entrar, sentei-me na escadaria em frente ao rio Tejo a fumar um cigarro. À minha volta, encontravam-se casais heterossexuais aninhados, um ou dois grupos de amigos e o ocasional loner como eu. Turistas passeavam-se à minha frente, muita população de trotinete, muita população de bicicleta, muito bebé, muito desportista a fazer aquela corrida depois de 8 horas de trabalho. Gosto muito do MAAT e de me sentar nas escadas a observar as gentes. Gosto de estar coberta por aquilo que parece uma onda gigante, se fosse uma a sério com certeza morreria, se não afogada, pelo menos de medo, mas como acaba por ser arquitetura, sossego. Estava a desfrutar da minha própria companhia quando uma rapariga muito bonita, de cabelo castanho atado num rabo-de-cavalo, olhos grandes da mesma cor, com aparelho nos dentes e um piercing no septo me aborda: “olha, desculpa…” e antes que a moça terminasse a frase, já eu estava a fazer toda uma história na minha cabeça sobre como aquele poderia ser, potencialmente, o momento mais que romântico em que eu iria conhecer a mãe dos meus futuros filhos.
“Olha, desculpa… tens kings?”
“Como?”
“Tens mortalhas king size?”
“Ah, não…”
“Ok, obrigada na mesma!”
E lá foi ela, procurando a sua mortalha para fumar aquele charro. Se calhar deveria começar a carregar na mala mortalhas king size para dar a raparigas giras que aleatoriamente falam comigo. Ou não. De qualquer modo, foi um momento tragicómico.
Estava quase na hora, por isso dirigi-me à entrada do museu. Estava uma grande bicha à minha frente (pun intended) e pensei que ficaria num mau lugar. Após vislumbrar a disposição das cadeiras, desci a rampa da Sala Oval o mais rápido que consegui, sem que perdesse a elegância natural da minha locomoção. Não houve problema – consegui um lugar ao meio, na fila da frente. Não poderia pedir melhor. Minto, poderia. Não gosto de estar perto de pessoas que desconheço, por isso uma cadeira de distância do sujeito sentado ao meu lado direito teria seria perfeito. A performance deveria começar entretanto, o que me distrairia do desconforto gerado pela aproximação de corpo alheio. Perante mim, encontrava-se meramente uma plataforma branca inclinada e um poste dourado, longo e fino, no ponto mais alto da mesma. O resto do cenário fazia-se branco.
Finalmente, as luzes apagaram-se. Ouviu-se a voz de Marylin Monroe, cantando os parabéns ao senhor presidente, enchendo a sala de uma música geralmente banal, mas que a própria torna icónica. A voz doce da atriz, tornada luxuriosa pela popular aclamação da mesma enquanto sex symbol, sugere, talvez, uma primeira provocação ao que é considerado sensual e a necessidade de ofertar essa sensualidade àquele que preenchia, na altura, um dos lugares políticos mais poderosos do mundo. Poderemos dizer que, inclusive, reforça a ideia de que a mulher deve agradar ao homem, podendo fazê-lo através do sexo – aliás, o sexo e o poder andam de mãos dadas desde os primórdios da humanidade.
Entra em cena, então, o primeiro performer, Forty Smooth, conhecido por dominar o pole dancing no metro de Nova Iorque (aparentemente, existe toda uma forma artística a tal associada, que surgiu da necessidade de criar uma nova forma de expressão nas comunidades queer e negra). Vestia um casaco desportivo com as cores dos Estados Unidos, algo que vou apelidar de saia, com tiras vermelhas e brancas (the stripes), meias desportivas azuis até ao joelho e uns ténis da Nike; o seu corpo era hirto, firme, bem trabalhado. Começou com vários movimentos que implicam uma grande força, segurança e domínio sobre o próprio corpo. Contudo, apresentava igualmente movimentos em que, por exemplo, realizava rotações de 180º num salto, de pernas afastadas, aos quais se seguiam outros que invocavam desequilíbrio. Uma leitura possível será o abalar das estruturas, a crítica, o questionamento daqueles que são os sistemas normativos que governam a sociedade; contudo, peco por pensar demasiado conceptualmente (durante um Q&A com a coreógrafa Lucinda Childs, perguntei-lhe se a sua peça Dance era baseada na ideia de iteração de Jacques Derrida, ao que ela me respondeu “Não… são apenas dançarinos a dançar.” A vergonha.).
Houve um momento de mudança de adereços – em vez do casaco, o performer envergava um tank top com fundo azul e estrelas brancas (the stars), tornando-se ele a bandeira dos Estados Unidos da América. É aí que principia a sua interação com o pole, qual bandeira içada ao som do hino nacional do país. Admirei a destreza com que Smooth brincava com a barra, conseguia ouvir a sua respiração cada vez mais ofegante, a sua pele crescentemente brilhante devido ao suor.
Surgiram os restantes performers, Kelly e Stuckey, cujo único propósito inicial foi o de servirem de marionetes humanas, seguindo as ordens de Smooth quando este subia a barra ou quando, inversamente, descansava. Estes encontravam-se vestidos com calças brancas, largas e ténis desportivos, penso que também da Nike, embora a memória me falhe. O comando destas operações demorou algum tempo, contudo não me alongarei em dissertações sobre o mesmo, uma vez que existem ainda três momentos concretos na performance que quero ressalvar.
O primeiro gesto é relativo à participação de Quenton Stuckey que, durante a coreografia, para, cerra aos mãos e bate como um símio no peito com os punhos, gritando: “I AM A MA-A-A-A-A-N!!!”. A associação de um movimento comummente visto em primatas como asserção da sua virilidade, num corpo regularmente designado como masculino, levanta algumas questões. O que é um homem? O que faz um homem? Não basta o corpo para uma pessoa ser homem? Terá uma pessoa que proclamar em voz alta a sua identidade de género para ser considerada um homem? Existem diferentes formas de ser homem? Ser homem é ser viril? Pode um homem ser homem e não ser viril? Porque terá um homem a necessidade de reforçar a sua virilidade? Será a virilidade um traço desejável num homem? Poderão outras identidades de género ser viris? No fundo, o que é a virilidade?
O segundo momento foi iterado algumas vezes durante a performance, também por Stuckey. Um pequeno gesto, o de rodar o braço direito sobre si mesmo, abrindo-o, de dentro para fora e estalando os dedos com este membro em plena extensão. É um gesto que eu uso muitas vezes para brincar com pessoas amigas e que é associado à comunidade gay ou a mulheres negras com pinta. É um “cheguei chegando”, um “oh snap”. É negro, é queer, é cómico, mas poderoso. Existe também um momento em que Stuckey lança um beijo atrevido ao público, com o mesmo caráter. Estes movimentos contrastam com a virilidade a priori descrita, é um jogo de género, o incorporar de várias manifestações de identidade aparentemente conflituosas num só indivíduo. Porque não ser os dois? Porquê ser só um? Poderei ser um homem com traços de feminilidade ou uma mulher com traços de masculinidade, ou um homem com ambos, ou uma mulher com ambos, ou nenhum, ou nem mulher nem homem, o que importa é que se pode ser e se pode estar e se deve estar da forma como queremos, sem prejudicar a liberdade do outro.
Por último, Gerard Kelly, o único performer caucasiano, pede a uma pessoa do público (não sou propriamente fã de interações com o público, mas dei-me por feliz por não ter sido chamada, estando mesmo à mão de semear) para ler um texto da Wikipedia sobre Tommie Smith, um americano que bateu um recorde de 200 metros sprint nos Jogos Olímpicos de 1968 e, aquando do recebimento da medalha, ergueu o punho direito, numa saudação do movimento Black Power, tendo sido na altura criticado por politizar os Jogos Olímpicos. Para mim, este foi um momento de reconhecimento, de aprendizagem e de reflexão. Não tinha conhecimento sobre esse momento histórico e acho admirável a homenagem a um movimento antirracista.
Termino, frisando que assisti a State of de um ponto de vista privilegiado, o de uma pessoa branca que tem, claro está, as suas lutas identitárias, mas cuja ignorância sobre a história de uma parte da população é paralela àquela do discurso hegemónico patriarcal que a afeta. Fiz, então, algo que muitas vezes faço meramente por educação e, genuinamente, bati palmas, celebrando a chapada contra a supremacia branca que, de forma dançada, tão gentilmente me mandaram.