#culturaqueer_3 As calças de Sua Majestade

#culturaqueer é uma proposta de rubrica bimensal com reflexões críticas sobre objetos artísticos que interliga cultura visual e literária e questões de género, sexualidade e feminismo. Escrevo com a intenção não de tornar as minhas palavras uma verdade absoluta, mas de proporcionar um diálogo saudável entre membros da comunidade LGBTQIA+ e seus aliados, funcionando também como uma plataforma de aprendizagem pessoal. Por isso, convido-vos a enviarem as vossas propostas de análise, sejam exposições, obras de arte, obras literárias, música, teatro ou filmes – sharing is caring! – ou a partilharem as vossas opiniões. Começamos?

#culturaqueer_3: As calças de Sua Majestade

Este mês, irei dissertar sobre aquela que foi, muito possivelmente, a primeira barreira de expressão de género a ser quebrada: mulheres usam saias, homens usam calças (penso que a cisnormatividade se encontra implícita nas minhas palavras, mas ressalva-se, nunca se sabe). Na verdade, o uso das calças só começou a ser universalizado nos anos 30, tendo, claro, alguma resistência por parte da população mais conservadora. Contudo, o inverso não aconteceu (e ainda está para acontecer). Nos seus primórdios da universalização, as calças surgiram como um símbolo, de poder, de independência, de emancipação para as mulheres que as utilizavam. Hoje em dia, na sociedade ocidental, já não acarretam a mesma conotação. A saia, contudo, não conseguiu o mesmo feito que a calça – continua a ser, no geral, uma roupa feminina (sim, eu sei que a roupa não tem género. Infelizmente, diria que a maioria da população não pensa o mesmo, nem a indústria da moda que insiste em dividir lojas entre secção de mulher e secção de homem. Essa é toda uma outra discussão cujo sumo, para já, não tenciono espremer).

Antes de continuarem a ler, devo dizer que este texto contém spoilers e um discurso muito cisnormativo, tendo em conta a época em que a ação decorre. Se, porventura, ofender alguém, peço desde já desculpa e solicito que me ajudem a refrasear. Uma amiga minha de Londres[1] desafiou-me a escrever sobre o filme “Queen Christina”, de 1933, na era pre-code,em que os filmes de Hollywood ainda não eram sujeitos a censura. A atriz principal é a incrível Greta Garbo, que desempenha um papel fabuloso nesta longa metragem. O filme é muitíssimo rico em termos de conteúdo, podendo ser abordado de múltiplas perspetivas, sendo que, obviamente, uma lente arco-íris será utilizada neste texto.

O filme “Queen Christina” foi baseado na vida da rainha Kristina da Suécia (1626-1689), na altura conhecida um pouco por toda a Europa como a “Minerva do Norte”, pela sua imensa inteligência e cultura, pouco comuns na época, especialmente para uma mulher. Kristina foi a única filha do rei Gustavus Adolphus e da rainha Maria Eleonora e herdou o trono do pai aos seis anos de idade, após este ter falecido em combate na Guerra dos 30 anos. Kristina, por ordem do rei, foi educada desde o berço como um príncipe, pelo que adquiriu muitos traços de masculinidade e interesses geralmente atribuídos, na época, a homens. Aliás, a rainha nunca manifestou interesse em casar ou gerar descendência, uma grande preocupação da corte sueca, motivo pelo qual se especula que esta tenha abdicado do trono em 1654. Após essa decisão, converteu-se ao Catolicismo. Tentou, ainda, assegurar o trono de Nápoles e da Polónia, sem sucesso, acabando por falecer em Roma, onde se encontra sepultada na Basílica de S. Pedro.

Lição de história terminada, devo dizer que este filme fez-me aperceber o quão o machismo está enraizado na sociedade. Percebi isso através de certas cenas, em que a minha reação às mesmas minorava feminilidades. Permitiu-me refletir sobre as minhas perceções de identidade de género e de expressão de género, de uma maneira muito analítica. Aquele que é considerado o filme mais queer da época, apesar de ter sido realizado em 1933, possibilita uma crítica muito atual. 

Logo no início do filme, quando a pequena Christina de seis anos sobe ao trono, ajudada pelo bom chanceler que copiosamente carpe, a criança aproxima-se do homem e diz-lhe “Os homens não choram”. Ora, este é o mito que, ainda hoje, se bem que muito menos, é propagado. Homem que é homem não verte lágrima. O choro é associado à sensibilidade e emotividade, traços geralmente relacionados com o feminino, o sexo fraco, e se o feminino é fraco e o choro faz parte do feminino, então o choro é fraco e os homens não são fracos, logo os homens não podem chorar. Ora, isto não seria nada de extraordinário nem motivo para reflexão, não fosse a frase iterada por uma criança. Com certeza, para falar ao chanceler daquele modo, a moça terá que ter sido educada naqueles termos, isto é, ela não nasceu a saber que as mulheres choram e os homens não. Foi-lhe incutida essa ideia, quer de forma direta, quer indireta, como uma mera observação do meio social onde se encontrava. Além disso, sabendo à partida que Christina estava a ser educada como um príncipe, a própria é proibida de chorar a morte do pai. Ela estava a aguentar, como devia ser; o chanceler, não. Aquilo que poderiam ser apenas palavras de apaziguamento meio estranhas poderão, assim, tornar-se num conselho, do homem mais homem para o homem menos homem, da criança para o seu chanceler.

No início do filme, a própria refere-se a si mesma como rei Christina (King Christina), mudando o género do seu título. Para além disso, tem maneirismos masculinos, veste-se como um homem, caça como um homem, anda a cavalo como um homem e é, inclusive, tomada por um homem, por diversas pessoas em certas cenas, mas mais particularmente pelo representante do rei de Espanha, Antonio (pormenor ao qual prestarei a devida atenção mais tarde). Christina assume-se no grande ecrã como bissexual, tal como a atriz que a interpretou, tendo por amante a Condessa Ebba, com quem partilha um beijo, num momento histórico do cinema. Christina pensava que a devoção que tinha a Ebba era recíproca. Contudo, existe uma cena em que se vê Ebba a queixar-se da dominação da rainha sobre ela e lamentar-se ao seu amante por não poder casar com ele. Christina assiste a esta confissão, ficando extremamente magoada e dececionada com Ebba.

Existe igualmente um tema recorrente na conversa da rainha com os seus conselheiros e corte: o do casamento e geração de um herdeiro. A corte insiste com a rainha que deverá casar com o seu primo, o príncipe Charles Gustav, tendo espalhado a falsa boa-nova pelo povo. Contudo, Christina não mostra, em momento algum do filme, intenções de casar ou gerar descendência. Aliás, existe um momento no filme em que o chanceler afirma “Sua Majestade, não podeis morrer como uma velha solteira!” (solteirona seria o termo mais adequado). Christina responde “Não faço tenções de tal. Morrerei solteiro!” (em inglês, “I shall die a bachelor!”). A utilização da palavra bachelor é importante, uma vez que é meramente utilizada para descrever alguém do género masculino. Claramente, o estado civil de solteiro é apenas admissível quando a pessoa pertence ao género masculino. Aqui, Christina brinca com estas noções de género e com a sua fluidez. 

Retornando, então, a Antonio, existe um momento em que Christina se encontra com o mesmo, por acaso, num inn (já se haviam conhecido previamente, num episódio que nada acrescenta para o que pretendo demonstrar). Ela reserva a suite para si mesma. Antonio, pensando que Christina é um homem, convida-a a tomar uma bebida. A conversa claramente interessa a ambos, existindo desde o início uma certa cumplicidade. Sente-se a tensão entre os dois. 

Entretanto, por falta de quartos, o hospedeiro sugere que ambos os cavalheiros partilhem a suite. Aquando da muda de roupa, Antonio apercebe-se que o outro “cavalheiro” afinal não o é. Diz: “I felt it, oh, I felt it! Life is so gloriously improbable!” (Senti-o, oh, eu senti-o! A vida é tão gloriosamente improvável!). Esta é, possivelmente, a minha citação preferida do filme, pelo seu double entendre. Primeiro, poderá indicar que ele sentia que Christina era, de facto, uma mulher. Poderá ter apanhado alguns trejeitos, alguns indícios de feminilidade. Outra interpretação, aquela pela qual eu tenho mais apreciação, é a de que Antonio sentiu atração por Christina enquanto homem, desconhecendo na verdade a sua identidade de género, representando assim o desejo homossexual no grande ecrã de um homem por outro. Contudo, após a revelação, ele quase que agradece o facto de Christina ser uma mulher e de poder agir sobre o seu desejo.

A partir deste momento, o filme fratura-se no ante Antonio e no post Antonio, especialmente no que diz respeito à expressão de género de Christina. Os seus maneirismos tornam-se mais femininos, deixa de vestir calças para passar a usar vestidos. A sua prioridade cessa de ser o reino para passar a ser Antonio. Ela quer ser “not a queen, just a woman in a man’s arms” (não uma rainha, meramente uma mulher nos braços de um homem). Esta mudança radical da personagem não me agradou inicialmente. Eu gostava do desafio da mulher vestida como um homem, que beija mulheres como um homem e que dirige o reino como um homem. Subitamente, o rei perde todo o seu caráter e torna-se aquilo que se espera de uma mulher. Depois, ocorreu-me: eu própria estava a censurar a feminilidade e redimi-la como fraca. Em vez de o fazer, eu deveria estar a apoiar a fluidez de expressão e de identidade de género, bem como de orientação sexual. Em vez de aplaudir aquilo que poderia ser tomado como uma quebra com o binarismo de género, estava a reforçá-lo. Se a mudança poderia ser feita de uma forma mais subtil? Poderia, mas se calhar não teria tanta pujança. Foi porque me irritei com algo que corrigi um pensamento cisnormativo e binarista. Christina possui exatamente o mesmo poder, os seus súbditos e a corte mantêm o respeito pela sua figura, mesmo envergando um vestido. Não são as roupas que definem o seu caráter e as suas capacidades, tal como nunca deveriam definir as de quaisquer mulheres ou outras pessoas na vida real. 

Quando ao desenlace da história entre Christina e Antonio, só mesmo vendo o filme. Spoiler, mas não tanto assim. 


[1]Àquelas pessoas que estão em Londres ou vão a Londres, estejam atentas ao programa do ciclo de cinema “Women and Cocaine”. Este filme passará no dia 18 de julho no Fringe! Queer Film & Arts Fest.


2 comentários

  1. “Cultura queer”…olha um termo interessante!! É isso aí, não são homem, nem mulher, nem são “coisa nenhuma”! Zeruuuuu!!! Não sou eu que o digo, sois vós, mesmos, pessoas sem identidade. Esquizofrenia total! Psiquiatria pura!!! É isso que o filme revela. Quereis ser assim?! É tão bom ser equilibradinha. O que tenho para agradecer a Deus, por me ter criado com juizinho!!… Já a minha avózinha dizia: “Ninguém é pobre senão de juízo”. E é verdade
    Eu estou a perder, o meu rico tempo, para ver se algum que aqui vem abre os olhos e acorda dessa cegueira. Mas ó desgraça das desgraças, “o pior cego é o que não quer ver”
    “SABEDORIA Popular”… como as pessoas, mesmo incultas eram Sábias!!!

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