#culturaqueer_7 Quando o desejo se compra

Estaria uma pequena multidão na sala. Quantas pessoas serão necessárias para se chamar a um grupo uma multidão? Para este propósito, suponhamos que cinquenta. Tínhamos passado a tarde a ouvir apresentações de sete minutos sobre o trabalho e propostas de trinta novos artistas que utilizam fotografia como meio artístico. Não é tarefa que se realize sem que o intelecto se canse. A Yushi era uma das últimas, tal como o alfabeto ordena.

Ao olhar Yushi Li, a primeira impressão é a de que não haverá rato mais silencioso que ela. Creio que apenas a ouvi a proclamar uma frase antes da apresentação e foi “I am Yushi and I am small, like, size-small.” (o porquê desta intervenção prende-se com toda uma atividade de team building que para o cerne da coisa não é relevante). Ora, a pequena, tímida e assustada Yushi tinha perante ela uma multidão de cinquenta pessoas. Profere:

“Ahm…I… Ahm…”

… várias vezes. Não arrancava. Eu estava estarrecida por ela, de tal modo que me surgiram instintos protetores quasi-medievais, qual príncipe que salva a amada das garras do terrível dragão/bruxa má/pais que a trancaram numa torre. Imaginei o cenário. Eu, a correr com uma velocidade diminuta, mas a bradar como se o mundo fosse acabar amanhã, com os meus movimentos de combate incríveis que aprendi nas aulas de Body Combat do ginásio da terrinha, derrotava o não tão temível inimigo, apenas para heroicamente levar a autoproclamada pequena Yushi ao colo não mais do que 50 metros, que a idade já pesa.

Eu já tinha visto o trabalho dela online. Identifiquei-me com os seus interesses e achei a estética apelativa, por isso era alguém cuja apresentação me despertava curiosidade. Acho que também foi por isso que desejei tão ardentemente que ela se saísse bem. E, spoiler alert, saiu.

Yushi Li, 2018
Your Reservation is Confirmed

Não relatarei os detalhes da apresentação, apenas mencionarei que aquele que foi um começo talvez um pouco atribulado culminou num discurso fluido sobre ideias de género, relações de poder, corpos, desejo e comodificação. O que eu gostaria de apresentar aqui é a última série da Yushi, Your Reservation is Confirmed (2018). Nesta, a Yushi aluga casas que ela considera ideais no AirBnB e homens que conhece na internet. O meu primeiro pensamento foi: “Wow, é preciso coragem para ir para uma casa estranha com um homem estranho”. Paremos já aqui.

O mero facto de eu ter pensado que esta forma de criação artística implicava perigo para a pessoa que a concretiza é sintomático de algo maior que é a perceção do género masculino como agente instigador de uma situação pela qual vale a pena ficar assustada, como violência. A associação da violência ao género masculino é histórica, uma vez que a opressão da mulher, ou a sobreposição do masculino a todos os restantes géneros também o é. Sim, sabemos, hashtag not all men. Contudo, por causa das estatísticas de violência de género, uma pessoa prefere ser cautelosa. Eu prefiro ser cautelosa. Se estou na rua a ir para casa à noite e me aparece um bacano de frente a andar na direção oposta, podem crer que passo a estrada para o outro lado. Ele até pode ser a pessoa mais doce do mundo, mas o meu instinto de sobrevivência diz-me para não confiar. Atenção: eu não sou misândrica, mas de facto a estrutura histórica do patriarcado prejudica não só as mulheres e outras pessoas, mas também aquelas que se identificam com o género masculino, que são alimentadas por discursos misóginos, podendo eventualmente tornar-se agressoras, ou serão apenas tipos porreiros que, pelas de uns, ficam com reputação semelhante.

Yushi Li, 2018
Your Reservation is Confirmed

Ao observar as fotografias de Yushi, a primeira coisa que é óbvia é o nu masculino. As Guerrila Girls inundaram-nos de informação sobre como é mais fácil, enquanto pessoa que se identifica com o género feminino, de entrar num museu nua, posando, do que enquanto artista. Por isso, o nu masculino é importante porque torna o homem vulnerável, frágil, num patamar mais ou menos semelhante ao da mulher. Digo mais ou menos porque, claro, há que sublinhar que, existindo público, não deixa de haver o fenómeno do “male gaze”, o olhar do masculino sobre o feminino, em que o primeiro vê o último como um objeto. Para além disso, é importante referir que no trabalho da Yushi ela vai além da mera objetificação, levando-a a um extremo de comodificação. O corpo do homem torna-se algo que pode ser trocado comercialmente, imputando-lhe um valor monetário. Esta aquisição de corpos masculinos expostos na sua plenitude representa a artista a dizer, e citando Ariana Grande, “I see it, I like it, I want it, I got it”. Por último, é de realçar a redefinição do eroticismo através das posições em que os homens são fotografados. Não posam como a típica musa, mas interagindo com objetos, com o espaço, com a artista, como se a sua mera existência fosse já à partida sexualizada de algum modo. Felizmente para os senhores, esse cenário apenas acontece na fotografia de Yushi Li. Para as pessoas que se identificam com o género feminino, essa ideia está tão enraizada que provavelmente não a questionam ou nem se apercebem desse facto.

Yushi Li, 2018
Your Reservation is Confirmed

Um outro elemento que me chama a atenção nesta série é o autorretrato. Yushi Li enfrenta a câmara com o olhar, sem receios. É um ser autoconsciente e, mais importante, emancipado. Ao ter na sua mão o disparador, Yushi Li demonstra que tem agência, que pode e tem direito a escolher e que essa decisão não é afetada de algum modo pela intenção, preferência ou escolha do sujeito passivo que ao seu lado se encontra. Yushi Li é o sujeito, o homem o objeto. Ao inverter a dinâmica relacional de poder que, infelizmente, ainda existe na sociedade ocidental (e um pouco por todo o mundo), Yushi Li cria uma fantasia de universo paralelo matriarcal.

Quando a artista terminou a apresentação, a sala aplaudiu.

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#culturaqueer é uma proposta de rubrica mensal com reflexões críticas sobre objetos artísticos que interliga cultura visual e questões de género, sexualidade e feminismo. O objetivo é proporcionar um diálogo saudável entre membros da comunidade LGBTQIA+ e seus aliados.


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