
Cenário: um casal de homens encontra-se num café e cumprimenta-se com um beijo nos lábios. Diante deles uma família com crianças lancha e, após dado o beijo, o pai pede, em tom enojado, que não o voltem a repetir diante deles e dos seus filhos. Afinal de contas, “o que pensarão as crianças?!“
A questão levantada tenta espelhar uma preocupação responsável por parte de um pai sobre os seus filhos, mas não passa de uma falácia, porque, na realidade, o que aquela pessoa expôs foi o que pensa o pai daquelas crianças. E isso foi totalmente transparente. Porque o que elas pensarão será moldado pelo que lhes é dito e, se para um pai ou uma mãe, um simples beijo entre duas pessoas do mesmo género é um ato reprovável, pecaminoso ou até nojento, o beijo tornar-se-á precisamente isso para elas. Porque quem lhes semeou essa ideia foram as pessoas que lhes são próximas, que as educa e ama, mas que assim também lhes criam o precedente do ódio perante o afeto e o carinho entre duas pessoas.
A responsabilidade não está, por isso, nas crianças, mas sim em quem as educa. Até porque, confesso, não encontrei até hoje uma criança que mostrasse especial estranheza quando cumprimentei o meu namorado diante delas com um beijo. Não houve confronto, não houve rejeição, nada, simplesmente aconteceu, como provavelmente lhes acontece todos os dias em casa, em eventos familiares ou escolares, ou na televisão. É um não-assunto para elas se o tornarmos um não-assunto e não um momento de repulsa ou condenação.
Porque essa, a existir, apenas se revela aos olhos dos pais, mães, avós, tios e tias. São os adultos que repudiam e condenam, não as crianças até lhes validarmos esses sentimentos. O que aquele pai devia questionar não era o que as suas crianças pensarão de um beijo entre dois homens, mas sim o que pensa ele da sua responsabilidade como pai na manutenção de sentimentos tão nocivos para as suas crianças como aqueles que transmitiu. Colocar-se do lado da propagação do ódio que lhe foi transmitido será a educação que os seus filhos merecem ter? Poderá ele quebrar esse ciclo e fazer melhor? É normal a expectativa das nossas crianças serem de alguma forma um espelho daquilo que somos, mas há que ambicionar e permitir que elas se tornem em melhores versões de nós mesmos, livres dos preconceitos com que crescemos, livres também da própria esperança, ainda que inconsciente, de serem nossos meros acrescentos.
O que pensarão, afinal, as crianças se não o tentarmos?
Fonte: Fotografia por Ben White.