The Scully Effect e a Representação (in)Directa

O que acho ‘fantástico’ é que se acredite que existam respostas para além do que a Ciência tem para oferecer. As respostas estão lá, simplesmente temos de saber onde procurar”. 

Palavras proferidas no ano de 1993 por uma personagem ficcional no pequeno ecrã, na altura muito pouco povoado. Essa personagem, não coincidentemente, era mulher. Cientista. Racional. Respeitada. Encarregada de usar os seus conhecimentos científicos para desmantelar as teorias mirabolantes de um colega do FBI na área do paranormal. O nome dessa personagem é Dana Scully, protagonista de The X-Files/Ficheiros Secretos e inspirou diretamente dois terços de mulheres americanas nas áreas das ciências exatas a tornarem-se cientistas, segundo um estudo levado a cabo recentemente pelo Geena Davis Institute on Gender in Media.

Parecem ser números estrondosos, mas só enfatizam a importância de algo que falamos aqui de forma extenuante por ser tão fulcral: Representação. Porque nós somos aquilo que vemos. E se vemos alguém igual (ou próximo) a nós a fazer algo, isso torna-se possível. E nada é mais poderoso do que televisão ou ficção, porque o alcance é maior do que qualquer história real possa ter. É surreal que uma Dana Scully tenha mais impacto em levar mulheres às ciências do que uma Sally Ride, uma Dian Fossey, uma Marie Curie ou uma Rosalind Franklin. Mas, infelizmente, estas mulheres não têm acesso privilegiado a uma plataforma universal acessível a todas e todos. 

Por isso, há 25 anos, o aparecimento de uma personagem como Dana Scully acabou por ser mais surreal do que quaisquer casos do oculto que ela pudesse estar a investigar. Uma mulher em pleno controlo das emoções e faculdades psicológicas e a usar o método científico para guiar as suas ações não era raro, era inédito, particularmente num tipo de ficção, ainda que fantástica e dentro da ficção científica, tomava lugar no nosso mundo e não numa realidade alternativa ou num futuro distante. Uma mulher que anteriormente seria certamente um homem, até porque Ficheiros Secretos inverteu ambos os papéis estereotipados de género, com Mulder a ser a pessoa mais emotiva e incoerente do duo protagonista. 

Por isso não é coincidência que uma personagem como Scully tenha inspirado mulheres a perseguirem os seus sonhos profissionais e singrar nas áreas das ciências. Não é a única, claro. Já tínhamos alguns exemplos como a Dra. Ellie Arroway (Contacto), a Dra. Ellie Sattler (Parque Jurássico), ou a Capitão Kathryn Janeway (Star Trek), mas ainda hoje temos pouca representação de mulheres cientistas, com Elementos Secretos e algumas personagens televisivas a quebrarem o molde. Esta falta de representação em áreas especificas da sociedade é extremamente limitante e dita o que acontece depois na dificuldade de obtenção de paridade em áreas dominadas por homens. 

Acredito que o alcance de Dana Scully se expandiu também a outras minorias, nomeadamente a comunidade LGBT. A personagem e a atriz que a protagoniza, Gillian Anderson (que agora podemos ver em Sex Education), abertamente bissexual numa altura em que tal era inexistente, tornaram-se ícones de culto para pessoas da comunidade. Eu, que obtive também recentemente o doutoramento em Biologia Molecular, também credito Scully como uma inspiração máxima na minha escolha de carreira nas ciências exatas. Com ela, vi uma porta aberta para um caminho que julgava não poder ser meu. Porque vi alguém que não era suposto singrar numa área dominada por homens heterossexuais poderosos, a ignorar o patriarcado vigente e a seguir a própria ambição. Também é por isto que tantos homens homossexuais se reveem em personagens femininas fortes: porque são hoje em dia verdadeiros outliers, pontos fora da curva do que é normativo, modelos retumbantes de pessoas que, de acordo com as convenções sociais, não deveriam ter alcançado o sucesso. Qualquer que seja a área. 

O incrível é que eu hoje, cientista homossexual adulto, continuo sem me conseguir identificar com nenhum arquétipo representado na ficção. A única exceção é a biografia de Alan Turing n’O Jogo da Imitação, consideravelmente problemático na forma como escolheu ocultar a sexualidade do matemático que decifrou o código que acabou com a Segunda Guerra Mundial. Tenho os meus modelos de pessoas reais, como Alexandre Quintanilha ou Giles Oldroyd, mas são exemplos aos quais não tinha qualquer acesso quando era criança e que acredito que a maioria das crianças continue a não ter. A importância da representação e de vermos aquilo que somos e, acima de tudo, do que podemos ser é talvez a coisa mais importante pela qual temos de batalhar como comunidade. Porque modelos como o de Dana Scully, mesmo na apelidada “nova idade de ouro da televisão”, continuam a ser escassos.

Texto revisto pela Ana Teresa.

A Scully esteve em destaque no Podcast Dar Voz A esQrever, oiçam: