Senhoras e Senhoras… Alaska’s Drag Race?

Estamos quase a finalizar a décima segunda temporada de RuPaul’s Drag Race, já está escolhido o quarteto finalista (trio, já que Sherry Pie foi eliminada) e mais uma rainha vai ser coroada como a próxima superestrela drag. E, logo a seguir, vai começar uma nova temporada de RuPaul’s Drag Race All Stars com algumas das drag queens favoritas a regressarem à competição entre elas. O que era um singelo programa marginal do canal gay Logo é hoje uma máquina de imprimir dinheiro e de produção de milhentos conteúdos na totalmente mainstream VH1. O programa que deu lugar a uma comunidade ostracizada está hoje a integrar-se naquilo que sempre ousou combater: o sistema.

RuPaul disse originalmente que fazer drag é sempre uma atitude contra-sistema e disruptiva da norma. E, até ela própria mudar a percepção deste arte, isso era mesmo inequívoco. O drag sempre foi dentro na comunidade um porto seguro para as pessoas LGBTI se expressarem sem julgamentos dos seus pares. E as drag queens eram as portadoras das nossas histórias individuais e coletivas. Nunca é demais relembrar que tanto Sylvia Rivera e Marsha P. Johnson, símbolos eternos do Stonewall e as mães do movimento gay moderno, eram mulheres trans e drag queens. E não, nem todas as pessoas que fazem drag “querem ser”/são mulheres, mas há muitas, MUITAS, que são. E, hoje, o seu drag é tão (ou mais) válido do que qualquer outra drag queen. 


Com Cairo Braga, discutimos a normatividade do drag em RuPaul’s Drag Race e apontamos potenciais substitutas no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈, oiçam:


RuPaul Andre Charles vem de outra época e começou a sua carreira nos anos 70 a fazer drag genderbending enquanto homem gay negro e muito longe da apresentação opulenta (e irrealista) de feminilidade de hoje. E não há como reconhecer nela uma das grandes pioneiras do entretenimento queer. Talvez a maior de todas afinal. RuPaul fez aquilo que ninguém tinha feito antes e foi muito mais além do que Divine, musa de John Waters, tinha conseguido ir. Nos anos 90 tornou-se num êxito do meio musical com o seu single Supermodel of the World onde explorava a cultura de supermodelos da época. Contra todas as probabilidades, conseguiu infiltrar-se na indústria e até um talk show na VH1 apresentava. Seguiu-se uma altura em a fama lhe escapou pelos dedos e assim continuou basicamente até ter a ideia milionária de fazer um Project Runaway e um America’s Next Top Model… com drag queens. E assim mudou a cultura queer e trouxe-a das margens e de caves mal iluminadas para palcos cintilantes por todo o Mundo. 

E dezassete (!) temporadas de RuPaul’s Drag Race depois, muitas vozes se têm levantado a questionar durante quanto mais tempo faz sentido continuar este formato. Basta olhar para Dragula e perceber isso. O que era revolucionário em Drag Race é agora considerado por muitas pessoas da comunidade… redundante e até normativo. Isto porque o drag da própria RuPaul, condicionado pelos anos de merecido e arduamente trabalhado privilégio, não é hoje em dia representativo da arte do drag que é expressa pelo resto da comunidade. Que o vive diariamente e não enquanto mero entretenimento televisivo. Se foi ela que incentivou o drag e o propulsionou de uma forma nunca antes presenciada desde a sua génese, é também ela que continua a impor-lhe limites que já não existem. E que na realidade nunca existiram.

Nunca na história do programa uma mulher trans concorreu abertamente no programa. Sonique, Carmen Carrera, Stacy Layne Matthews, Kenya Michaels, Jiggly Caliente, Lashaun Beyond, Monica Beverly Hills, Kelly Mantle, Honey Mahogany. Nenhuma delas concorreu com a sua verdadeira identidade e só fizeram o coming out enquanto mulheres trans depois de terminado o programa. Apenas Peppermint teve a bravura de o fazer durante a nona temporada e só Gia Gunn concorreu na quarta temporada (de All Stars, certo) já enquanto mulher trans assumida. Curiosamente não há quaisquer registos de outras identidades para além de homem cis gay estarem presentes na competição desde a sexta temporada, ou seja, desde 2014.

A realidade é que RuPaul’s Drag Race deixou de ser direcionado para a comunidade LGBTI e apesar de continuar a fazer um trabalho incrível de representação de pessoas anteriormente marginalizadas numa plataforma gargantuana… já não nos representa, não na totalidade. A nossa diversidade está agora muito condicionada à norma do homem cis branco. Novamente. Isto porque cada agora volta-se a levantar a questão do racismo nos fãs de Drag Race. Apenas uma drag queen negra, Bob, conseguiu ultrapassar a meta de 1 milhão de seguidores nas redes sociais. O que a própria diz, numa discussão online com Peppermint sobre racismo (ver acima), ser uma exceção que não invalida a regra. Não é por acaso que a produção do programa fez um ex-aequeo da vencedora da quarta temporada de All Stars, uma queen branca (Trinity the Tuck) e uma queen negra (Monet Xchange) para tentar desviar atenções do racismo entranhado no novo formato mainstream de Drag Race. 

Estará então a chegar a hora, depois de tanta transgressão, em que RuPaul deveria fazer sashay away? Provavelmente. O seu charisma, uniqueness, nerve and talent serão certamente lembrados para sempre naquela que é claramente a Oprah do drag. Mas para quem é que passa o ceptro e a coroa? Correndo o risco de eu próprio estar a incorrer numa atitude racista e limitada no meu privilégio, vou sugerir um nome: Alaska Thunderfuck, concorrente da quinta temporada de Drag Race e vencedora da segunda temporada de All Stars. Calma, calma. Porquê? Muito simples. Alaska conhece o programa de trás para a frente, por dentro e por fora, com uma memória enciclopédica que pode ser comprovada duas vezes por semana no podcast Race Chaser. Ela sabe o que é suposto Drag Race ser e o que deve representar. Mas acima de tudo sabe que, no seu formato atual, Drag Race não representa a comunidade LGBTI. Muitas vezes tem ido contra a opinião da Mama Ru ao insistir fervorosamente na visibilidade das mulheres drag queens e drag kings, cis e trans, no programa. E promove o seu próprio concurso em Los Angeles onde tal é a regra. É a mais prolifica de todas as drag queens, a par de Trixie Mattel, na sua carreira musical e durante esta pandemia tem feito shows online onde angaria dinheiro para drag queens mais desconhecidas, sejam elas cis, trans ou mesmo kings. Ela não quer que ela, homem cis branco, seja aquilo que o drag é suposto ser. Porque não o é. Nem o pode ser mais. Alaska 2021? Anyone



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Respostas de 4 a “Senhoras e Senhoras… Alaska’s Drag Race?”

  1. […] Falamos do passado IDAHOT e de como Cláudio Ramos (e a TVI) estão a celebrar este dia marcante com o requinte capitalista da homofobia. Passamos para discutir Modern Family e da normalização das famílias arco-íris na televisão e também da aprovação da norma no Brasil que permite a homens gay e bissexuais fazerem a doação de sangue. Como não podia deixar de ser com este convidado especial, terminamos numa discussão da normatividade do drag em RuPaul’s Drag Race e apontamos potenciais substitutas. […]

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  2. […] são elas as nossas rainhas. Algo que ainda não foi tomado em conta em fenómenos queer como RuPaul’s Drag Race que continua a deixar alguma normatividade entrar nesta série agora mainst…, com pessoas trans a não poderem de alguma forma participar. Isto tudo apesar da propria RuPaul […]

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  3. […] se tem dito sobre o atual estado de RuPaul’s Drag Race e da necessidade de seguir um caminho diferente. Doze anos depois de ter iniciado a revolução da […]

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