Tão útil este Sexo inútil

Foi há mais de 4 anos, em 2016, que Ana Zanatti publicou O sexo inútil, mas ainda hoje, e por largos anos, será útil lê-lo.

Neste livro, Ana Zanatti reúne um conjunto de testemunhos de pessoas LGBTI e das suas famílias, juntando também a sua própria vivência, com excertos dos seus diários de adolescente. No centro da narrativa, temos Joana, uma jovem em luta com a sua sexualidade que encontra em Ana Zanatti uma confidente, e cujo percurso seguimos. Nesta fusão de experiências, o livro dá voz a muitas das angústias e dificuldades que as pessoas LGBTI (e familiares) atravessam na descoberta e aceitação da sua orientação sexual ou identidade de género.

A experiência da autora é decisiva para a construção do livro. Enquanto jovem, pela sua caminhada em busca de um sentido muito diferente daquele que a família, sobretudo o pai, antecipava (ou exigia) para a vida dela, e também enquanto figura pública assumidamente não heterossexual. Apesar de reforçar que nunca escondeu quem era, foi há onze anos, em plena luta pelo direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo em Portugal, que Ana Zanatti assumiu publicamente a sua orientação sexual, tendo desde aí sido uma figura mobilizadora e visível da causa LGBTI. E é muito relevante que o faça, pois é uma mulher de 70 anos, que cresceu numa época muito distinta da atual, que fez o seu próprio caminho, mas que se foi renovando e aprendendo com o contexto à sua volta. O livro é um exemplo disso, pois não fica cingido a uma experiência pessoal e individual, mais ou menos feliz, de si própria ou de outras pessoas, mas bebe de várias gentes, de várias vozes, de várias perspetivas. E com isso consegue chegar a muitas mais pessoas também.

Aquando do lançamento do livro em 2016, constatou que de facto há 50 anos as pessoas não tinham informação nenhuma sobre as questões de orientação sexual, encontrando na altura um livro sobre o assunto que traçava um “panorama trágico” para as pessoas homossexuais, vistas como “desviadas e doentes”. Haver hoje mais conhecimento e acesso à informação não impede que continue a existir fobia e ignorância na sociedade, assim como muita vergonha e ódio internalizado entre as pessoas LGBTI. A ideia de desvio e doença, e até de tragédia, persiste e resiste nas perspetivas de muitas pessoas, jovens e não só. Essa identificação negativa sobre a própria orientação sexual ou identidade de género pode manter-nos durante muito tempo aprisionadas a um olhar externo e deturpado daquilo que somos.

Ana Zanatti tenta quebrar essa prisão, prestando um serviço às pessoas que podem estar em sofrimento e a lutar contra a sua condição e/ou identidade (ou a das suas crias), pois faz um retrato muito preciso sobre o que é um percurso de auto-aceitação. Mais que um livro para ativistas ou pessoas mais resolvidas na sua orientação ou identidade, é um livro que fala para as pessoas que ainda buscam uma “resolução”, que precisam encontrar-se, de achar a esperança e descobrir o orgulho. E um livro assim é fundamental. Para quebrar o estigma e os grilhões autoimpostos. É um livro para oferecer à mãe, ao pai, aos avós, que encontrarão nas palavras de Zanatti, e também nas das várias pessoas a quem ela dá a palavra, um abrigo seguro para compreenderem muitas coisas sobre as quais ainda não têm luz.

No mês do orgulho, a visibilidade, a expressão, a luta, o encontro e o sentido de comunidade e pertença são fundamentais para mim e para todas as pessoas LGBTI, pois reforçam o seu sentido primordial. Valorize-se também o sentido de tato que, no clima de cegueira e surdez que se vive, não podemos mesmo perder. É preciso trazer mais gente para a escuta, para a partilha, mais pessoas aliadas, mais pessoas armariadas, mais pessoas em conflito interior e que não sabem o que fazer. É preciso trazer todas essas pessoas para este nosso mês, para este nosso orgulho.

Com O sexo inútil, Ana Zanatti consegue ter esse papel tão útil de trazer mais gente, sem concessões, vergonhas ou pruridos, nunca abdicando da sua voz nem silenciando outras. É uma lição de amor próprio, que reclama um espaço de liberdade, que nenhum juízo exterior poderá comprometer. Porque este amor próprio, este orgulho, quando começa, nunca irá parar.


Ana Zanatti e o seu livro estiveram em destaque no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈, oiçam: