
Este ano não há Arraial Lisboa Pride.
Estamos na altura dele, no dia em que era suposto acontecer e temos de continuar a dizê-lo a nós próprias para que ganhe alguma dimensão nas nossas cabeças. Na verdade, e sabemo-lo há meses, continua a não parecer real…
Para quem não nos conhece, somos a Joana Cadete Pires e a Marta Ramos, fazemos parte da equipa da Associação ILGA Portugal e estamos ativamente envolvidas na preparação, organização e realização do maior evento LGBTI de Portugal há alguns anos.
Somos grandes amigas dentro e fora da ILGA e durante algumas das últimas 72h de cada edição do Arraial Lisboa Pride. A Joana faz parte da Equipa de Logística que, entre muitas outras tarefas, faz controle de bares e a Marta faz parte da Equipa de Bares, ainda que no próprio dia faça de tudo um pouco.
As fotos escolhidas foram tiradas na edição passada: na primeira, já tínhamos discutido de véspera (como acontece em todas as edições…), tínhamos apagado inúmeros fogos naquela manhã (é provável que alguma máquina de cerveja não estivesse a funcionar, algum bar tivesse trazido material que não devia ou algum equipamento não estivesse no local devido) e felizmente o evento tinha acabado de começar e estávamos a testar o bar da ILGA; na segunda, provavelmente já eram 7h da manhã, tínhamos tido uma das maiores discussões de sempre por causa dos copos reutilizáveis e aguardávamos que a empresa os viesse recolher depois de organizarmos em pequenas pilhas as centenas de copos já utilizados e alguns apanhados diretamente do chão, caixotes do lixo ou da areia da “praia do Terreiro do Paço”.
Tratamo-nos mutuamente por “chefe” e é nestes momentos que medimos forças sem que nenhuma “ganhe” sobre a outra, ainda que uma e outra aceite à vez a concessão de uma aparente vitória…
Partilhamos isto convosco, porque precisamos de reviver o que este ano não nos será possível fazer e porque precisamos de construir novas memórias daquilo que já vivemos.
É esta sensação de vazio que nos assola (e que nos tem assolado durante todo este Mês do Orgulho) e temos de confessar que até destes extremos de humores, horas de amores e desamores sentimos falta…
E se estamos neste turbilhão de emoções, imaginamos que as dezenas de outras pessoas da Equipa, as centenas de pessoas Voluntárias e as milhares de pessoas que passam e se divertem no Arraial Lisboa Pride estejam a sentir o mesmo.
Se hoje fosse o dia do Arraial Lisboa Pride a esta hora a Maria já estaria sem voz e incapaz de se ouvir no microfone, a Rapha e a sua equipa de apoio ao recinto (Team Wolf) já teriam acartado dezenas de baías de metal para proteger o recinto, a Leonor e a Diana já teriam feito os primeiros soundchecks do dia, a Leticia já estaria a arrumar os camarins, a Sara já teria fiscalizado e validado a temperatura de cada uma das máquinas das cervejas, o Gonçalo e a Sara já teriam recebido dezenas de pessoas voluntárias e das equipas de apoio (Bombeiros, Polícia, palco, som e luzes, etc) e assegurado a sua alimentação e hidratação, a Margarida e o Hélder já teriam o seu cantinho bem protegido, a Direção já estaria a preparar o discurso que faria naquela noite e as pessoas vol-chave do Welcome Center, Pride Village, Bares, Armazém, Backstage e Bar da ILGA (Ivnna, Sérgio, Paulo, Margarida, Valério, Teresa, e muitas outras pessoas) estariam a ultimar as suas áreas para que às 16h estivessemos no nosso melhor e a receber as mais de 70,000 pessoas que por ali passam ao longo de 12h. A Joana e a Marta provavelmente já teriam tido pelo menos três discussões – algumas por walkie-talkie. E que saudades temos disto tudo!
O dia do Arraial é o dia mais longo do ano – ou melhor, são vários dias entre pré e pós e todos os mais longos de cada ano – o que nos leva ao desespero e ao regozijo em questão de minutos. E que nos relembra – principalmente quando subimos ao palco já de madrugada e vemos milhares de pessoas à nossa frente em festa – porque somos ativistas todo o ano, porque é que a ILGA nos consome e energiza, porque somos comunidades incríveis e porque continuamos e queremos continuar, ano após ano, a organizar o maior evento LGBTI de Portugal.
Temos saudades nossas e vossas, do bom e do mau, de ver a estátua do Terreiro do Paço iluminada com as cores da bandeira arco íris, ocupar as ruas, as redes sociais e as vidas de muitas pessoas. Sentimos esse vazio este ano mas estamos certas (e cheias de pica!) de que para o ano lá estaremos novamente e queremos que seja sempre mais e melhor do que as memórias e experiências passadas.
Engane-se quem acha que o Arraial é só festa. O Arraial é política, é visibilidade, é sobrevivência e também é festa – e uma das bem boas: cheia de amor, afetos e corpos.
Que o vazio de 2020 não se instale nos nossos corpos porque para o ano o Terreiro do Paço vai abaixo!
Se preparem…
Joana Cadete Pires e Marta Ramos
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