Listen: ouvir, mas sobretudo compreender

Por que razão o filme Listen nos ajuda a compreender os riscos que corremos no pós-pandemia?

O palmarés de Listen é já considerável, para um filme português. É a primeira longa (metragem) de Ana Rocha de Sousa e foi premiado com quatro distinções no festival de Veneza deste ano.

Como agora eu sou também aluno de cinema na Ar.Co, este exercício de escrever sobre uma realizadora premiada é quase sacrílego, fosse eu dado a esse tipo de impedimentos do intelecto. Como não sou, escrevo, mas também por ser neste fórum, escrevo menos numa perspetiva cinematográfica e mais numa perspetiva de direitos humanos.

O enredo é simples, mas a temática é muito complexa, atual e é baseada em factos reais. Sem ser spoiler, enquadremos, pois, o enredo. Um casal de imigrantes portugueses a viver em Londres, com duas filhas (bebé uma, 7 anos a outra, uma menina surda-muda) e um filho (12 anos), enfrenta um momento de graves dificuldades socioeconómicas e um horizonte deserto de oportunidades, ermo em afeto, e humanismo, vindo do exterior. Após certas escolhas mal feitas e muita inabilidade, são-lhes retiradas as crianças que passam a estar sob proteção do estado. Daí para a frente, assiste-se a um drama de incredulidades múltiplas, tamanha é a falta de respeito pelos mais básicos direitos humanos.

Para melhor contextualizar, é importante salientar que em Portugal o sistema de adoção não permitiria uma situação desta natureza. Talvez, neste caso, o nosso sistema nacional peque pelo contrário.

Um enredo simples disse eu. Sim, reafirmo. Porém, toca em temas muito sensíveis (e incómodos) da nossa atualidade, da xenofobia, aos direitos humanos dos imigrantes (o mesmo se passa com refugiados), à adoção, ao emprego digno e à proteção social, à liberalização e quase privatização dos serviços de segurança social, passando, ainda, subtilmente, pela indiferença social. Isto cabe tudo num cadinho onde tudo acontece em 73 minutos, com uma brutal interpretação de Lúcia Moniz (no papel de Bela), ao lado de Ruben Garcia (Jota).

Rocha de Sousa dirige esta história de forma magistral. Conseguimos perceber um sistema de segurança social que sob a capa de proteção de menores, arranca, literalmente, as crianças à sua família e que passa por cima de quase todos os seus direitos, liberdades e garantias, aludindo a uma “necessária” e “defensora das crianças” rapidez para reduzir o tempo de retenção na instituição. Que faz da própria adoção um negócio. Que impede a comunicação em língua gestual com uma menina surda, atirando-a para o completo isolamento. Um sistema bruto, cego, e surdo, que faz das suas demonstrações de força a ferramenta ideal para paralisar os imigrantes, desrespeitando a sua identidade, tratando-os como não se tratam sequer os animais.

Vemos um sistema económico que empurra hordas de imigrantes (talvez ainda abaixo de proles, para onde também as empurra, de resto) para empregos clandestinos, quase sem proteção social, e com baixo rendimento. Vemos o que é um estado musculado e uma sociedade indiferente, onde as pessoas do dia-a-dia com quem esta família se vai cruzando (no supermercado, nos serviços, etc.) são “simpáticas” e dizem algo como “have a lovely day”, que não significa nada, senão “eu não quero saber”. Porque estas coisas são incómodas e as pessoas “têm pena”. That’s all.

E projetamos, também, tal como vimos nesse outro magistral I, Daniel Blake (Ken Loach, 2016), uma sociedade que empurra os pobres (imigrantes aqui quase todos incluídos) para a pobreza, sem acesso ao elevador social e privados de perspetivas realistas de melhoria de vida. Há quem lhe chame escravatura moderna (no extremo). “Preguiçosos”, diriam os mais neoliberais, ou mesmo “nunca quiseram sair da zona de conforto e lutar”, diriam os entusiastas da “autorregulação do mercado”. Mas não, não há ferramentas para lutar contra este sistema que voltou, em muitos aspetos, a níveis da 2ª revolução industrial, com demasiadas horas de trabalho para se levar para casa o suficiente para comer, com poucas sobras. Um sistema que faz evaporar a classe média.

E projetamos (neste caso não vemos diretamente, mas antes projetamos), ainda, um mundo em que também os direitos conquistados da população LGBTI, e das mulheres, pois a agenda é a mesma, estão em risco de ser anulados. O risco é elevado e temos assistido nos últimos tempos a grandes ameaças às conquistas alcançadas por mais de 50 anos de luta, desde as revoltas de Stonewall Inn em Nova Iorque.

Vê-se tanto neste filme, porque percebemos o realismo do retrato, num país (UK) com uma agenda a puxar a extrema direita, e projetamos os cenários mais dantescos. O que nos parecia distópico há pouco tempo, hoje parece-nos realista.

E agora a pergunta do início: por que razão o filme Listen nos ajuda a compreender os riscos que corremos no pós-pandemia?

A pandemia da covid-19 veio, já se percebeu há muito, aumentar o fosso entre os ricos e os pobres, alargando a dimensão das desigualdades sociais e económicas. Além disso, com o intuito de controlar a saúde pública, foram dados passos sem precedentes no poder (e ganas) dos estados de controlar o comportamento das pessoas, de suspender os seus direitos e cilindrar as suas liberdades, criando um clima de medo. Este cenário serve na perfeição as estratégias dos movimentos antidemocracia de extrema direita.

O receio com que nos enfrentamos é sobretudo o do desconhecimento em relação ao pós-pandemia. Como será o mundo daqui a um, dois, três anos, depois de deixarmos de ter medo do contágio? Vamos ter medo do estado? Vão mais estados adotar o modelo chinês de um estado autoritário que tudo controla e tudo consegue? Vamos também imitar a América de Trump, violenta, mentirosa e “selvagem”? Como vão ser tratados os imigrantes? Vão mais países passar por cima das garantias das pessoas?

O problema dos estados de emergência e de tudo a sociedade passivamente aceitar que se faça em prol da segurança, ou da saúde pública, incluindo o desrespeito pelas mais básicas liberdades, é que hoje abdicamos de algumas, amanhã não conseguimos resistir aos estados que vão tomar conta das que restam. A História dá-nos muitos exemplos deste processo de alastramento da autocracia.

É, pois, por isso, que Listen nos ajuda a vislumbrar um mundo que não queremos (eu não). Um mundo pós pandemia sem o humanismo que tem definido as sociedades modernas, laicas e progressistas. Um mundo pós pandemia sem democracia, com todos os defeitos que tenha, mas que ainda é aquilo pelo qual muitos acreditamos e lutamos por. Listen é um abre olhos que nos impele para a reação e a resistência. É urgente resistir a esta imagem de estado, e defender a democracia, defendendo os direitos humanos de todas as pessoas.

Fonte das imagens: página facebook do filme Listen e rtp.pt.