Falemos de Mulheres no futebol

Como o próprio título deixa entrever, este texto é sobre mulheres no futebol. Antes de mais, há que justificar esse mesmo título, que pode ser polémico. O título podia ser “Falemos de futebol feminino”, não o é propositadamente. É mais que altura de começarmos a desconstruir certas ideias pré-concebidas e profundamente enraizadas na cultura portuguesa. Durante muito tempo o futebol, considerado por muitos o desporto rei, era visto como um desporto de homens. Hoje em dia, além de nos devermos questionar se existem de facto desportos masculinos ou femininos, o futebol como foi outrora conhecido, jogado única e exclusivamente por homens, não existe mais. Atualmente contamos com jogadoras com tanta qualidade como os melhores jogadores.

Por considerar que o desporto não é exclusivo de nenhum género, não coloquei futebol feminino. Trata-se de uma expressão que deixei de usar há algum tempo, agora digo apenas “vou ver um jogo de futebol” ou “vou ver a equipa tal”. Lembro-me de que, quando referia que ia assistir a um jogo de futebol feminino, a reação era, por norma, muito semelhante. Havia um descrédito e um desinteresse, não raras vezes acompanhado por comentários depreciativos. Do tipo “ah mas as mulheres não sabem jogar”. Além de demonstrarem a sua ignorância na matéria, exibem com orgulho um preconceito gasto e bafiento. Hoje quando digo que vou assistir a um jogo, sem mencionar o género dos protagonistas, geralmente noto reações de espanto e até alguma curiosidade quando percebemos que me refiro a futebol jogado por mulheres. Por exemplo, “não sabia que o clube tal também tinha equipa feminina”. Este tema dá pano para mangas, mas não é o propósito deste texto. Vamos falar de mulheres no mundo do futebol, mais especificamente da seleção feminina dos Estados Unidos da América.

Jogou-se hoje, 27/11/20, o jogo amigável entre Holanda e Estados Unidos, sendo o reencontro das equipas finalistas do último campeonato do mundo. A seleção dos EUA, como já o tem demonstrado outras vezes, canaliza o palco e a voz que tem para destacar questões urgentes na sociedade. Tanto a nível individual como coletivo. Desta vez, a comitiva uniu-se num protesto contra a violência e perseguição a pessoas negras. Associou-se ao já conhecido movimento “Black Lives Matter” tendo essa mesma frase estampada nos casacos das jogadoras. Antes do início da partida, aquando do hino dos EUA a equipa titular ajoelhou-se demonstrando a sua solidariedade, posicionando-se contra o racismo. Na imagem acima podemos ver que restaram de pé as jogadoras Kelley O’Hara e Julie Hertz.

Porquê que este foi um momento importante? Porque estamos a falar da melhor seleção do mundo a dar visibilidade a uma luta que deve ser de tod@s nós. Esta não foi a primeira vez que a equipa se mobilizou coletivamente para chamar à atenção a uma causa social. O ano passado, pouco tempo após se terem consagrado campeãs mundiais, as jogadoras uniram-se num protesto contra a desigualdade salarial que, infelizmente, ainda se regista entre homens e mulheres. Não falamos de uns trocos mas de diferenças abismais na ordem das centenas de milhares de euros no mundo do futebol.

Ainda em contexto do mundial, a jogadora Megan Rapinoe assumidamente homossexual, afirmou que é impossível conseguir o notório registo que a equipa dos EUA tem vindo a alcançar, sem pessoas gays. Ou seja, se a orientação sexual fosse um critério de exclusão, a equipa nunca chegaria onde chegou. Estas declarações surgiram após uma troca de galhardetes com o então presidente dos EUA (Trump). O que assistimos por parte das suas companheiras de equipa foi o total apoio. Há uns anos, essa empatia foi demonstrada ao exibirem as cores da bandeira LGBT nos nomes e números das camisolas. Assistimos a uma equipa que lida com estas questões de uma forma natural e descontraída, como todos os seres humanos deviam de lidar.

No futebol masculino acho que dificilmente tal aconteceria. Assistimos a equipas que também colocam os nomes e números, e por vezes até a braçadeira de capitão com a bandeira LGBT, mas daí a termos jogadores assumidamente homossexuais… vai um passo muito grande. Isto porque no fundo, socialmente construiu-se o futebol como um desporto de homens sempre com a heteronormatividade em pano de fundo. “Então se calhar é porque não há muitos gays a jogar futebol”. Creio que a realidade não é bem assim. Não se trata de serem muitos ou poucos, a questão é mais profunda que isso. Prende-se com a forma como o núcleo, neste caso a equipa e o desporto em geral, do indivíduo vai reagir a uma orientação sexual diferente da heterossexualidade. No mundo do desporto feminino, e falo por experiência própria, existe uma descontração muito maior em relação à orientação sexual. Aliás, perdi a conta ao número de vezes que ouvi alguém dizer que “as jogadoras de futebol são todas lésbicas”. Não consigo deixar de me rir cada vez que oiço tal absurdo. Apesar desse preconceito exterior, nunca vi nas minhas colegas uma pressão relativamente à orientação sexual, quero dizer que sempre houve um diálogo aberto e o tema em questão foi sempre tratado de uma forma muito empática. Nesse aspeto, considero que o mundo do futebol masculino tem ainda um longo caminho a percorrer e a aprender com o mundo do futebol feminino. E a seleção dos EUA protagoniza um papel pioneiro ao abordar esses mesmos temas expondo-nos tal como são: naturais e humanos.

No final do mês passado, a jovem jogadora Lynn Williams, bateu o record de velocidade do conhecido jogador Kylian Mbappé, respetivamente 34,24 km/h e 33,98 km/h. Este marco é notável não só a nível pessoal como é também uma vitória para o futebol. O alcançar deste feito, vem provar que o discurso “futebol é para homens” como se estes fosses mais aptos, além de errado é completamente falso. Há ainda um longo caminho a percorrer, mas aquilo a que assistimos é que em igualdade de condições, ou algo próximo, o género não é uma característica desvantajosa. Tive conhecimento deste record através da página de Instagram da seleção dos EUA. Não vi uma única notícia em jornal desportivo mais conhecidos a relatar esse record. A discriminação alcança campos muito profundos, felizmente passíveis de reversão para uma situação mais igualitária.

Ainda assim, não posso deixar passar esta oportunidade para falar no crescente fenómeno de popularidade não só do futebol jogado por mulheres, como das próprias jogadoras. Há cerca de 2 meses, as americanas Tobin Heath e Christen Press agitaram o campeonato inglês ao assinarem contrato com o Manchester United. Pouco tempo após chegarem a Manchester e escolherem os números das camisolas (Heath 77 e Press 24), estas esgotaram em cerca de 48 horas. Li algumas notícias que destacavam a popularidade das recentes jogadoras do histórico clube inglês Manchester United. Isto porque, o número de venda de camisolas de Heath e Press foi consideravelmente superior a toda a equipa do Manchester, mesmo com nomes como Bruno Fernandes, Paul Pogba e David de Gea – nomes sonantes do futebol mundial. É um marco que me deixa muito contente, faz-me ter esperança de que futuramente teremos um mundo do futebol mais justamente dividido e não apenas centrado nos seus protagonistas iniciais. Mas mais uma vez, tive acesso a esta notícia porque acompanho estas jogadoras, não me chegou através dos meios de comunicação gerais. Lembro-me de ouvir, ver e ler em vários jornais e estações de televisão a loucura que foi a venda de camisolas de Cristiano Ronaldo quando este se mudou para a Juventus. Capitalismo à parte, existe uma diferença assinalável na atenção que é dada ao futebol em função do género dos protagonistas.

Termino este texto de opinião, mudando o foco da equipa dos EUA para o cenário que se regista em Portugal. A realidade entre uma e outra é ainda muito grande, infelizmente. Em Portugal, assistimos ao recente e tímido crescimento do campeonato feminino. Para que consigamos ter a qualidade de outras seleções é absolutamente fundamental a aposta em estruturas e na formação para que se crie um projeto viável, sólido e com resultados a longo prazo. Em junho do presente ano elementos da Federação Portuguesa de Futebol posicionaram-se a favor de medidas discriminatórias em relação ao futebol jogado por mulheres. Esta situação motivou naturalmente a indignação e revolta de muitas jogadoras e simpatizantes desta modalidade. É vergonhoso e lamentável que a instituição que devia lutar pela promoção e desenvolvimento do futebol, seja aquela que afinal a rebaixa e menospreza.

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