Já se sente mais um mês do Orgulho LGBTI a chegar quando há apresentadores heterossexuais que se queixam de ser vítimas de heterofobia ou liberais que se sentem ofendidos por pessoas não binárias desejarem ser tratadas com os pronomes correspondentes. Este é, efetivamente, um mundo aparvalhado.
Tão aparvalhado que creio ter chegado o momento em que, Iniciativa Liberal, temos de falar… Esta é uma daquelas conversas que merecia a nossa melhor atenção há algum tempo. Quando em 2019, num debate promovido no Dia (Inter)Nacional de Luta contra a Homo, Bi, Trans e Interfobia, um dos membros-fundadores do partido, Matheus Costa, considerou que “se for discriminado no local de trabalho no dia seguinte não vai voltar lá“, o público presente ficou atónito. É que o alheamento sobre a discriminação que a população LGBTI sofre *também* nos seus locais de trabalho e a inversão do ónus da responsabilidade tornaram-se demasiado óbvios que o público presente se viu obrigado a rir-se em modo de vergonha alheia quando ouviu tamanha incompreensão sobre a realidade vivida no seu dia-a-dia.
Mas isso, enfim, pode ser chutado para questões de ordem ideológica de auto-regulação do mercado e, imagino, dos direitos de quem trabalha. Prossigamos então.
Presença polémica na Marcha do Orgulho LGBTI de Lisboa
Nesse mesmo ano, a Iniciativa Liberal achou apropriado, em plena Marcha do Orgulho LGBTI+ de Lisboa, encabeçar cartazes de Hitler e Guevara “unidos na homofobia” ou de António Costa a beijar diversos líderes políticos. “Ama quem quiseres, mas não f#%@$ o país” era o lema. Talvez o memo de que aquele é um evento de celebração do Orgulho LGBTI e de luta contra a LGBTIfobia não tenha chegado a tempo e que o claro arremesso político não seja para ali chamado. Aliás, arremesso político faz-se, por exemplo, votando favoravelmente em projetos de resolução que recomendam o apoio às associações e coletivos LGBTI no âmbito da crise epidémica. As mesmíssimas associações e coletivos LGBTI que, sei lá, organizaram a Marcha do Orgulho LGBTI+ de Lisboa. Aí, e ao contrário da sua aparição na Marcha, a Iniciativa Liberal absteve-se.
Mas isso, enfim, pode ser chutado para questões estilo na comunicação e de marketing virais que o partido escolhe. Prossigamos então.
O caso Rafael Corte Real
Não sendo estes casos anteriormente apontados pontos únicos, chegamos assim a linhas cada vez mais vermelhas em relação à Iniciativa Liberal. E são elas as “putinhas”, as “feminazis” e os “paneleiros” de Rafael Corte Real, candidato à Câmara de Gondomar e que recebeu, após denúncias, o apoio do partido que representa.
Membro da Comissão Executiva da Iniciativa Liberal, Rafel Corte Real dirigiu, em 2016, insultos a participantes de uma marcha feminista contra a violência sexual e identificou-se como “um inimigo das feminazis doentes da cabeça”. Num grupo do Facebook entretanto extinto, o candidato liberal mostrou-se surpreendido por um homem ter namorada porque este “tem cara de paneleiro“. Este parece ser, aliás, um tipo de tratamento e linguagem partilhada pelo seu camarada e candidato à Câmara de Viseu, Fernando Figueiredo, que escreveu que as feministas eram “mal fodidas” e “faschistas” no Facebook em publicações também entretanto apagadas.
Como se defendeu o candidato liberal?
Como reagiu então o candidato a Gondomar aos vários comentários de teor machista e homofóbico que fez há quatro anos, quando tinha 26 anos, ou seja e como se costuma dizer, adulto e vacinado? Explicou que, entre 2014 e 2017, adotou “uma persona digital, um part time troll em que dizia muita coisa”, com registo no qual hoje não se revê. “Eu tenho muitos defeitos, mas ser perfeito não é um deles”, claramente, acrescentaria eu.
Mas, mais seriamente, não é a exigência de uma perfeição moral, ética e política que está aqui em causa. Não estamos a falar de uma pessoa que disse umas parvoíces em criança ou adolescente. Não estamos sequer a falar de um jovem adulto que disse umas barbaridades nas redes sociais contra mulheres que lutam pela sua segurança ou insultos homofóbicos e gratuitos. Estamos a falar de um homem, hoje com 30 anos, que há 4 fez isso tudo e hoje não pede desculpa. Muito pelo contrário, acusa quem o expôs de seguir uma “política de cancelamento” e de inveja das “oportunidades” que o próprio teve “e se calhar ninguém deu” a quem o odeia.
Dada a gravidade e a quantidade de situações em que o político foi apanhado a espalhar ódio até tão recentemente, não colhe escudar-se na alegada “falta de experiência e de maturidade” aos 26 anos e na convicção pessoal de que evoluiu. Não duvido que as pessoas possam – e devam – melhorar ao longo das suas vidas. E todas nós dizemos ou fazemos coisas no passado de que não nos revemos ou orgulhamos no presente. Mas o ónus fica do nosso lado, provar que existiu, de facto, esse crescimento, essa ponderação e um excelente primeiro passo para tal consiste em admitir o erro e pedir desculpa a quem ofendemos ou magoámos.
A narrativa de vitimização não colhe
Ora, quando quem agride não o faz e tenta alterar a narrativa para a sua vitimização, apenas mostra o quão dúbio e superficial é o seu proclamado crescimento. Diria até que aponta precisamente no sentido oposto. É por isso que a Iniciativa Liberal reafirmar confiança política nos seus dois candidatos aqui mencionados, porque “qualquer dos candidatos é muito mais do que prints“, apenas ajuda à perpetuação e inconsequência destes comportamentos. Afinal de contas e como se pode ver também neste caso, a dita “cultura de cancelamento” não funciona e trata-se de uma expressão usada (e abusada) por quem detém uma posição de poder.
No final (e quase sempre), as pessoas ditas canceladas pouco ou nada perdem e noutras até ganham pela exposição das suas reclamações. Bate tudo certo, portanto. E a Iniciativa Liberal só tem a ganhar ao manter os seus candidatos. Mas a que preço? Ou melhor, o que diz isso dos seus valores enquanto partido?
Iniciativa Liberal desresponsabiliza-se
Para terminar esta difícil mas premente conversa, diz a Iniciativa Liberal que no partido “as pessoas não são condenadas sumariamente por algo que escreveram há anos”. Ora, foi há 4 anos que um homem adulto o escreveu repetidamente, não foi há uma década ou duas ou três quando era adolescente. O partido diz também rejeitar “veementemente a cultura de cancelamento tribal que pretende julgar sumariamente pessoas por uma frase em falso escrita há anos no ambiente provocatório das redes sociais“.
Mais uma vez, a cultura de cancelamento não existe – vide acima – e quem tomou atitudes provocatórias, ofensivas e de forma continuada foram os candidatos da Iniciativa Liberal que não se dignaram sequer a um pedido de desculpas. Rejeita, por fim, a Iniciativa Liberal o alegado ataque a estas pessoas “sem as conhecer, sem as ouvir, sem ter a mínima noção dos seus valores”. Mas conhecemos, ouvimos e temos hoje, mais que nunca, a noção dos seus valores. Até temos os recibos!
Ep.168 – Orgulho, Mudança de Género em Portugal, Pessoas Trans em risco no Texas e Estudos de Juventude LGBTI+ – Dar Voz a esQrever: Notícias, Cultura e Opinião LGBTI 🎙🏳️🌈
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