Vários feminismos na sua vontade de renunciar e combater o patriarcado afastaram-se de esferas religiosas marcadas pelo poder exercido pelos homens, como o catolicismo. Durante o século XX e até hoje, no que é definida como a viragem pós-secular, têm surgido práticas espirituais alternativas que, em grande medida, são responsáveis pela reaproximação da mulher ao universo da bruxaria. O encontro frutífero serviu-se de um legado mitológico de choque e perturbação social com que as bruxas eram conhecidas, um pouco à semelhança do que alguns feminismos mais radicais procuram provocar na atualidade. Não obstante, os tópicos da monstruosidade e do medo que permeiam este discurso poder-nos-á, inevitavelmente, conduzir à perpetuação do papel da mulher como instigadora, perigosa e ameaçadora.
Zoë Montana Hoetzel, a cantora norte-americana que assina como Zolita, identifica-se enquanto feminista, bruxa e queer. A maioria das suas músicas explora esta trilogia temática tão importante na vida da artista. O vídeo musical de HOLY, escrito e realizado por ela e Jake Saner, apresenta-se pela sinopse “a young girl explores a lesbian relationship in a patriarchal schoolhouse and starts a secret feminist girl cult”. Na agenda política desta obra está a metáfora que torna literal o poder, no sentido discursivo e metafísico, ligado à sororidade. O culto feminista tem patente um processo emancipatório da mulher, o reconhecimento e aceitação dos seus corpos e das relações não-normativas. Ao pensar na identidade musical desta obra o papel do sagrado, presente no título, torna-se mote para pensar de que forma o som se conecta com o plano do culto? Será que este permite imaginar outros atos de veneração ou questiona os que já conhecemos?
Na introdução, o som da estalada dada a uma das mulheres e o sino que se ouve de seguida são dois símbolos acústicos da repressão neste vídeo. A religião cristã está historicamente ligada aos seus monumentos e objetos onde preserva significados particulares. Igrejas e os seus sons, como o sino, acompanham o dia a dia de várias sociedades porque marcam as horas e dessa forma regulam as atividades. O elemento cultural que é aqui evocado é a normalização e o regime, o fazer ‘perfeito’ e de acordo com as regras e costumes ensinados numa escola de tradição sagrada. Mais ainda, aqui a estalada é sinónima de uma manutenção do patriarcado e do papel social que é esperado da mulher.
A primeira situação de envolvimento lésbico revela este segredo escondido. Zolita canta “worship the body” para convocar o desejo e o prazer que é visualizado através do beijo entre duas mulheres. Quando a turma sai do quarto e elas ficam sozinhas, Zolita é puxada pela sua companheira para dentro e demonstra o seu afeto longe das outras. Ao mesmo tempo, uma melodia eletrónica é abafada através de um filtro que elimina o seu brilho porque o som é semelhante à relação, também este receia ser revelado. À medida que a música avança a nitidez da melodia aumenta e depois acompanha a história que joga entre o perigo e a autoafirmação. Em tradições de música ocidental a melodia assume muitas vezes o papel de um protagonista que surge, sofre adversidades, enfrenta outros sons/personagens, e eventualmente vence ou é derrotado (o fim da música, portanto). Neste caso, se a voz da cantora pode ser ouvida como a representação de Zolita, visto que ela canta na primeira pessoa, a melodia nos instrumentos é uma materialização da sua identidade lésbica.
Ao minuto 4’22 a música sofre uma quebra e torna-se instrumental. A ausência da cantora e da sua história muda a nossa atenção para a traição que sofre. Uma colega de quarto descobre a relação proibida em solo sagrado e vai contar ao padre com medo de sofrer também ela represálias. Inicia-se aqui o crescendo final onde o culto feminista é perseguido pela floresta e o casal, incapaz de escapar, é capturado e julgado. A música termina em modo oposto à forma como começou, se no início a melodia tornava-se mais nítida em jeito de abertura para a história, agora fica desafinada. O som desagradável aos ouvidos de alguns representa o sofrimento de Zolita, prestes a ser enforcada no meio da floresta. É importante não deixar de ver os últimos segundos do vídeo porque, na imagem final, os dedos da sua mão movem-se indicando que está viva. Não há um único momento explícito da presença de magia no vídeo, mas este apontamento final abre essa possibilidade.
É evidente que apesar de ser uma música repetitiva os detalhes da manipulação da melodia são evocativos das lutas de poder na narrativa. Outro aspeto a notar é que a música é calma e o seu ambiente é sombrio. Em termos do seu género ela é uma música popular eletrónica, mas a marcação do tempo é tão suave que nunca nos convoca à dança frenética, antes a um momento de contemplação. Contemplação e veneração são igualmente palavras propícias a um léxico do sagrado, o que quer dizer que a música abre portas a uma identidade de múltiplas sacralidades. O sistema de crenças e valores imposto nos sons do sino e da estalada entram em confronto com a música que Zolita proclama. Na letra ela dá a sua alma e sacrifica-se pela parceira, “cause your love is holy”, uma expressão que tem tanto de poético como de romantismo exacerbado. A moral assenta na liberdade de escolha, mas o epíteto da monstruosidade continua estampado no enforcamento que dá o sentido de desvio ao lesbianismo. Em outra passagem, Zolita pede perdão, “forgive me Father I am weak”, mas continua que “it’s not forgiveness that I seek”. Importa-me menos o que ela procura, mas antes perguntar-me por que razão continua a dirigir-se ao patriarcado, a esse Pai com maiúscula, para dizer que é ‘fraca’ e assim insistir que a cedência ao amor lésbico é uma cedência ao pecado. Para mim estas representações são sempre problemáticas, ainda que interessantes no plano estético, porque caem simultaneamente na transgressão e perpetuação de estigmas sociais ligadas à mulher.