
Há uma opinião partilhada por muitos de que a música popular aborda como tópicos centrais as emoções, experiências e situações do dia a dia dos seus intervenientes. Uns dizem que é sobre amor, outros violência, o que me faz questionar quem são os sujeitos dessas histórias, sobre quem e para quem é que as narram. O cantor de uma música nem sempre é coincidente com a personagem que encarna porque a música não é somente uma expressão biográfica, existem atores e atuações. Isto leva os ouvintes a interrogarem-se e também a serem livres de construírem as suas interpretações. O mesmo acontece no vídeo musical que, mais do ser uma leitura direta da música é uma forma poética de atuação, confusa e ambígua como muitas das identidades de quem participa.
NIGHTS LIKE THIS é um vídeo musical lançado em 2019 pelos artistas norte-americanos Kehlani e Ty Dolla $ign, e realizado por Bo Mirosseni. Num tweet, Kehlani resume a sua visão da história da seguinte forma: “found her on my porch.. she needed help.. i’m 2 nice. brought her 2 da lab.. after fixing her, i introduce her to being human. she realizes i have a soul and she doesn’t. she BIG MAD. decides to steal my humanity. doesn’t want Ty to snitch.. kills him too. fuck these bot-ches.” Fora desta síntese estão várias questões que me parecem prementes para discutir a identidade sonora desta obra. Por trás desta leitura mais imediata, quem ou o que representam os protagonistas? O que a música, ouvida dentro e fora da história, nos diz sobre esta noite imaginada?
A música é um R&B de verso e refrão com uma passagem em rap de Ty. O vídeo demonstra a leitura que Robin James faz da robô-diva do R&B. Para a autora, “tecnologia e sexualidade feminina, quando em corpos brancos (individuais e sociais), garante o progresso e o desenvolvimento da civilização; […] quando em corpos negros (individuais ou sociais), corrompe a civilização”. Apesar de ser uma generalização problemática, é o que se verifica em NIGHTS LIKE THIS porque Tari Elegele é uma mulher negra que protagoniza a androide que entra para dentro do corpo de Kehlani, queima a sua casa, assassina Ty e foge de carro. Uma leitura racializada e controversa destes acontecimentos diria que sim, os corpos negros aparecem aqui como tecnologias perigosas para a sociedade.
Kehlani descreve na letra que não consegue pensar em outra pessoa e, para suportar a dor, cria uma nova relação a partir das suas próprias mãos. Ela é a engenheira que recupera o corpo de uma androide, e esta figura assume-se como a metáfora para a pessoa amada. Kehlani gosta daquela que “act like you need remindin”, portanto, tem um problema informático na memória e por ser robótica pode “bring it back and rewind it”, rebobinar e regressar onde estava. Por ser uma criação dela, ou pelo menos alguém que restabeleceu, existe uma dimensão de controlo da parte de Kehlani. Contudo, a androide tem consciência e, ao deixar de ser apenas um objeto do prazer para pensar e agir, significa que pode deixar de a amar e até magoá-la.
Em termos gerais, a androide torna literal vários aspetos de um relacionamento amoroso. Tocar no peito e vivenciar o que a outra pessoa sente, aceder às suas memórias, ao que pensa, às suas intenções e ao que pretende da relação, é algo que muitas pessoas desejariam ser capazes de fazer. O vídeo mostra que através de um corpo androide e da capacidade de piratear o outro – ao mesmo tempo uma pista para a crueldade, invasão e violência no namoro – é possível ‘entrar’ no outro, ser o outro, identificar-se com o outro. Entrar liga-se à metáfora do coração, que Kehlani diz, arrependida, “Should have never gave you my heart on consignment”. Kehlani diz “I see all the signs, I see all the clues”, porque acha que é capaz de ver através da outra pessoa. À música é muitas vezes atribuída essa capacidade, o musicólogo Samuel Szendy diz que ela é capaz de atravessar os ‘intermundos’, seguindo a lógica do filósofo alemão Arthur Schopenhauer que dizia que só com ela somos capazes de ver a verdade do mundo. Porém, numa atuação musical, tal como em qualquer relação, não implica que sejamos capazes de ouvir e ver tudo o que existe…
Na letra, “You gon’ get my hopes high, girl” aparece a pista que nos diz que há um relacionamento homossexual, isto se considerarmos que o sujeito narrativo da história é uma mulher, a Kehlani. Por outro lado, a mulher androide que está na imagem é bissexual porque está apaixonada por um homem. No plano simbólico, a sua indecisão sobre quem ama é ligada ao signo do zodíaco de gémeos, que tendem a ser pessoas voláteis e que dificilmente estão apenas com uma pessoa. “But for what?” é cantado com uma segunda voz, em autotune para ficar grave e não-humana, revelando o carácter artificial da relação e até a ideia de transferência de mentes entre corpos que confunde a própria ideia de identidade de género. “Thought you were mine, but you decided to be with him, though”, sendo de destacar que a acentuação no “with him, though”, em registo mais agudo, transmite a sensação de lamento e tristeza que Kehlani sente relativamente a isso.
Quanto à pausa na música para visualizarmos a transferência de mentes e a entrada de Ty Dolla Sign, cria um momento dramático porque transita do formato da atuação musical para a curta-metragem narrativa. Ty entra na casa de Kehlani, vê o espaço vazio, e depois canta num monólogo ao centro da sala. Uma análise da letra apresenta apenas um protagonista na história, como se fosse alguém que é incarnado pelos dois cantores. Kehlani canta na primeira pessoa e fala sobre o seu amor e, quando Ty aparece, o texto segue a mesma lógica e não introduz outra personagem. No refrão final, os dois cantores têm até passagens que repetem o mesmo texto. Ligando este fio condutor de certa forma confuso, diria que uma leitura possível é que existe uma personagem no texto e outras duas que são atores-cantores no vídeo. Considerando ainda que a androide é capaz de transferir a sua mente entre corpos e absorver a essência dos humanos, torna-se evidente que este contexto ambíguo tem várias personagens e identidades de género dentro e fora da história.
“Nights Like This” é acima de tudo um sonho e uma visão de futuro possível. É cantado como um monólogo de solidão, de uma melodia acompanhada por poucos instrumentos, por isso a voz, particularmente no início, parece que flutua num espaço sónico vazio e solitário. Numa relação homossexual que falhou, existe uma fantasia de substituição. O sonho expressa-se de modo mais evidente quando Ty entra na casa e Kehlani já saiu da cadeira de rodas. Ouvimos ao fundo a música a tocar, abafada como se fosse um disco que toca em outra divisão, uma memória escondida que não está totalmente materializada. Existe, não obstante, um pesadelo pós-humano da mercantilização e fetishização dos corpos, da possibilidade de produzir, mudar e aceder aos corpos por via da tecnologia. Mas numa leitura positiva deste problema está, evidentemente, o uso destes dispositivos na redesignação dos corpos de muitas pessoas trans. Importa, por fim, decidir se este vídeo representa a perspetiva do opressor ou do oprimido, da tecnologia como subjugação ou libertação, da heteronormatividade ou da visão queer, porque em noites como esta as relações sociais podem ser e ter de tudo um pouco.