
Comentaristas saíram em peregrinação nos últimos dias para escreverem sobre a campanha publicitária ABCLGBTQIA+, provavelmente a maior em Portugal, que terminara há três semanas. Nela podíamos ver, em cartazes espalhados um pouco por todo o país, definições genéricas sobre conceitos e identidades LGBTI+. Pelo seu forte alcance, acredito que muitas daquelas palavras foram vistas pela primeira vez e em espaços públicos por muitas pessoas em Portugal. A reação da comunidade LGBTI+ foi celebratória. Por fim, via-se presente, representada e a ocupar o também seu espaço público. As inúmeras fotografias partilhadas da campanha são prova disso.
A campanha ABCLGBTQIA+ foi lançada pela Fox Life que, mérito lhe seja dado, a lançou em parceria com um jornal, o Público, e com uma associação LGBTI, a ILGA Portugal. E, além disso, secundarizou a presença da sua marca na campanha em prol da mensagem. O foco foi mesmo a partilha de informação sobre os conceitos e as identidades para o público geral e, por isso, a linguagem usada foi acessível e simples.
Os cartazes e publicidades estiveram durante o mês de junho, o do Orgulho LGBTI+, espalhados por Portugal e no final desse mês findou. Final feliz?
A comunidade comentarista uniu-se para proteger o status quo
Eis se não que, já em julho, o comentador JPP achou que a coisa não podia ficar por ali e pronunciou-se sobre a linguagem inclusiva e a identidade de género da dita campanha. Aparentemente, o autor, “caucasiano branco, do sexo masculino, cisgénero, binário”, tem dificuldade em entender que não está a ser “diminuído” por isso, mas sim o seu privilégio.
Depois deste juntaram-se RAP, CA, JDQ, HR+. E aqui o “+” representa muitos outros nomes que nos últimos dias assinaram artigos de opinião em orgãos de comunicação social. São distintos, mas, no global, a comunidade comentarista é unida e parece-me claro que a mesma se chegou à frente para aproveitar a onda da polémica iniciada por JPP e, eventualmente, manter a relevância dos seus cargos e do seu próprio privilégio. É que, se calhar não por acaso, quase-quase todos estes nomes são de homens. E, tal como JPP, serão quase-quase todos também “caucasianos brancos, do sexo masculino, cisgénero, binário”. Ou seja, decidiram todos estes e muitos outros de tablóides abordar a identidade LGBTI+ no espaço de uma semana. Notável, não é?
Não está em causa a liberdade de expressão, mas as consequências de quem usa e abusa da sua posição privilegiada
Para deixar claro, não está aqui em causa a liberdade de expressão ou o direitos destas pessoas escreverem sobre o que bem entenderem. Isto é muito mais um desabado sobre a grande peregrinação e quem no fim tem os joelhos rebentados.
Comecemos então. Se calhar, antes de escrever, importa falar. E quem tem acesso fácil aos meios de comunicação terá também o mesmo acesso fácil à informação. Pergunto, houve essa preocupação? Acresce ainda a responsabilidade acrescida de não perpetuar estigmas e não suscitar uma onda de ódio com base no que foi dito do seu púlpito. Porque, quer se acredite quer não, as palavras têm peso e trazem consequências.
As colunas de opinião podem ser extremamente solitárias, mas não se deixe que o ego lhes dê a fantasia da razão e muito menos a da irresponsabilidade. Porque as suas palavras têm efetivamente consequências, mas nem todas estas pessoas – repito, quase todas elas homens – se atrevem a escrever sobre causas que as coloquem em causa. Muito pelo contrário, aliás, alimentam-se precisamente de polémicas para justificarem e manterem assim relevantes as suas colunas de opinião.
É a comunidade LGBTI+ que tem de lidar e viver com as consequências das suas palavras. Não elas.
Mas, e custa dizê-lo quando são pessoas que se assumem defensoras dos direitos humanos e da igualdade, algumas com provas dadas no passado, as verdadeiras consequências não as sofrem elas. Porque o jogo que fazem é com as identidades e vivências de outrem.
Somos meras peãs da sua semântica, mas quando questionam as nossas identidades, expressões, formas como nos tratamos e não tratamos, como nos apropriamos do insulto, como desejamos ser tratadas, somos nós que temos de lidar e viver com isso. Não elas.
Quando se tornam elas troféus da extrema-direita que as transformam em prova da relevância dos chamados temas fraturantes que tanto querem trazer à baila, à Assembleia da República e ao referendo para que, lá está, seja uma maioria a decidir sobre os direitos de uma minoria, pergunto, que significado lhes darão? Porque, e mais uma vez, somos nós que temos de lidar e viver com isso. Não elas.
Talvez por isso importasse medir bem as palavras para entender que alvos poderão estas conter. E para tal uma conversa ou uma simples pesquisa podem ser suficientes para se fazer luz. Porque assim como está, com esta série de artigos violentamente publicados, tudo isto soa a cartelização da opinião com a consequência, direta ou indireta, consciente ou inconsciente, mas sem dúvida que óbvia, de normalizar a homofobia, a bifobia e a transfobia na discussão pública. Muitos parabéns!
Os insultos gratuitos são a consequência imediata desta peregrinação, mas contra quem foi escrito, não quem escreveu
A quantidade de insultos e paternalismos, a quantidade de argumentos do “até tenho amigos que são”, do “nem sou homofóbico, mas estão a ir longe demais”, do “diz-se sexo e não género”, do “não me chames cis” que li e recebi (e recebemos) foram, sem exagero, às largas centenas nestes últimos dias. Até fui insultado um par de vezes por usar a palavra “comentarista”, tal é a facilidade com que alguém se atira à agressão. Por tudo isto, só posso agradecer à grande peregrinação JPPRAPJDQHR+, dado que, reitero, somos nós que temos de lidar e viver com isso. Não elas.
Por fim, se há assim tanto interesse em verem-se discutidos os temas LGBTI+, nomeadamente as suas identidades, por que não convidar estas pessoas para falar delas mesmas? Se há a publicação de tantos e recorrentes artigos de homens “caucasianos brancos, do sexo masculino, cisgénero, binário” sobre o tema, provavelmente haverá um espacinho para tal. É que assim, perdoem-me, mas soa a bullying organizado, promovido e sustentado pelos orgãos de comunicação social, cúmplices deste achincalhamento público.
É que se é para termos de lidar e viver com isto ao menos que tenhamos a oportunidade do proveito para combater o preconceito.
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