Homoquê? Haja pachorra!

Homoquê? Haja pachorra
Imagem baseada na de Claudio Schwarz.

Foi com tristeza na alma e um “poupem-me” na cara que me apercebi ter passado os últimos trinta segundos a ler um texto de Ricardo Araújo Pereira. O senhor, de sexo por mim ainda, e felizmente, indeterminado, consegue compor um conjunto de palavras que, sem avançar o debate um milímetro que seja, não contém uma única piada. Pós-modernismo é isto, não é? Já não sei. Enfim, ensinaram-me a procurar dar feedback positivo e estou a tentar — taxa de sucesso para já igual à do texto do senhor. Eu gosto de simetria, fica bonito. 

Em questão está a campanha da Fox Life, em destaque a ignorância da pessoa escritora. Ó Ricardo, de onde achas que vem o “sexualidade” de “homossexualidade” senão da palavra, parecidíssima, quase igual, está lá e tudo — “sexualidade”? O tal fenómeno, comum a quase todas as pessoas, de sentir atração e desejo sexual, geralmente direcionado a outras pessoas, sabes? 

Mas espera, eu entendo a confusão, o erro de categoria. É uma verdade infeliz que a mesma palavra designe tanto o ato sexual como uma categorização biológica complexa que está relacionada com a reprodução sexual. Repara que nos humanos modernos, o ato sexual pouco tem a ver com a reprodução sexual. Sexo não é nem necessário nem suficiente para a reprodução, e a definição do que é um ato sexual há muito que se expandiu para além do que se pode fazer com um pénis e uma vagina. 

O género é uma construção em que todas as pessoas participam, mesmo na atração sexual

Agora que o tio Alfredo já se enojou demais para continuar a ler, podemos falar aqui entre nós do “homo” da coisa. Realmente, quer dizer “mesmo”, “igual”, “insosso”. (“Hetero” quer dizer “outro”, “diferente”, “cronista”, “florzinha de estufa”. O “bi” deixamos de lado, que é muito entusiasmo de uma só vez.) 

Mas mesmo, outro, sexo, quê? Aqui temos de colocar a carapuça de cientista natural e social, difícil para quem passa a vida a vomitar o que lhe vier à cabeça, empatizo. Devagarinho, então, que dói menos: As primeiras partes das palavras, o “homo” e afins, referem-se à orientação da segunda parte, da sexualidade. Ora, uma pessoa pode sentir atração sexual por pessoas iguais a si ou diferentes de si, pode ter uma orientação para os mesmos ou para os outros. Pode ser desconfortável, mas as palavras em si nunca especificaram melhor. Diferente, em termos de quê? 

Não me cabe a mim explicar a biologia complexa por detrás do espetro que é o sexo biológico. E qualquer observador entende que a partir de algumas características criamos distinções na sociedade com repercussões que pouco ou nada têm a ver com reprodução. Também não custa perceber que nós mesmos parecemos sentir alguma proximidade identitária com essas categorias criadas pela sociedade, e nos auto-identificamos como “homem”, “mulher”, ou “não, obrigado”. Para mais, quando vemos uma outra pessoa, facilmente lhe impomos um rótulo advindo desta categorização — sem ter de perguntar, diga-se, nem despir, nem analisar quimicamente. 

Quando sentimos uma atração sexual, aquela primeira faísca, ela é baseada em quê? Será que “sexo biológico”, algo inferível sim, mas longe de observável, e para muitas pessoas inconsistente com a forma como se vêem e são vistas no mundo, serve? 

Se sim, “homosexual” é alguém que sente atração sexual exclusivamente por pessoas do mesmo sexo. Para quem nunca teve de pensar no assunto, porque não definir assim?

A língua avança através do desconforto

Felizmente a língua avança através do desconforto. Através do reconhecimento que quem tem direito a espaço numa revista sem ter de demonstrar qualquer poder de reflexão não representa o sumo da sabedoria. Do reconhecimento que o desconforto que essa pessoa sente ao ver um cartaz ABCLGBTQIA+ é inconsequente face ao desconforto e perigo sofrido por quem sente que não, “sexo” não serve. 

E a língua avança também com a ciência. Ao descobrirmos que é impossível termos atração sexual pelo sexo de uma pessoa, visto que provavelmente nunca o vamos poder determinar, percebemos a necessidade de um termo mais adequado. “Género” é esse termo. Pode vir a mudar? Pode. Mas não é através de choramingos infantis de pessoas que não entendem o suficiente do que estão a falar para propor algo novo.

Há muito trabalho pela frente que só se pode fazer debatendo, escrevendo, agindo. Mas, do fundo do meu coração, poupem-me. Entendam antes de debater, leiam antes de escrever, pensem antes de agir. 

Não pensem é demais que as construções sociais dão sífilis, diz o Doutor.

Vasco Brazão

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