
Foi uma cena infeliz, começava a Conferência “Igualdade em Construção: Os Direitos Humanos das Pessoas LGBT+”, organizada pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, quando elementos do Habeas Corpus entram pelo salão nobre da instituição adentro aos berros e com acusações de ‘promoção da homossexualidade’, de ‘pouca vergonha’ e que aquilo ‘não era normal’. Em vários momentos viram-se gestos da saudação nazi.
Sem polícia, a equipa do evento cercou-os e impediu-os de entrar ainda mais no salão nobre da Ordem dos Advogados, a própria Bastonária Dra. Fernanda de Almeida Pinheiro, se não me trai a memória, começou a incentivar toda a gente presente na conferência a que batesse palmas para as impor naquele espaço e silenciar as palavras de ordem – e de ódio – daquele grupo.
Ninguém saiu, a organização convidou, com notável calma, mas com ainda maior convicção, à saída daqueles homens que tentavam silenciar, intimidar e filmar quem ali estava. Entre disputas ruidosas de ocupação daquele espaço, a tensão era muita, mas, felizmente, não houve resposta às provocações nem escalada para a violência.
Ordem dos Advogados apresenta queixa-crime
Noticia o Público que o grupo foi identificado mais tarde pela PSP à saída do edifício, impedidos de voltar a entrar e que a Ordem dos Advogados vai apresentar queixa-crime, incluindo pela captação ilícita de imagens e a sua divulgação nas redes sociais.
“Este comportamento é absolutamente intolerável num Estado de direito“, considerou ao jornal a bastonária, denunciando um ato de “intimidação“, com vista a “criar desacatos e interromper os trabalhos“.
“O que aconteceu só dá mais razão ao motivo da conferência. Se, na Ordem dos Advogados, numa casa da liberdade e da democracia, um grupo violento de extrema-direita tenta perturbar a nossa liberdade de reunião e de expressão, isso só prova a urgência dos temas que aqui discutimos hoje“, defendeu também Francisco Granja de Almeida, da organização e moderação do evento.
O Bloco de Esquerda defendeu em agosto passado que organizações extremistas como a associação Habeas Corpus ou o Grupo 1143 devem ser desmanteladas. Fabian Figueiredo lembrou que estes grupos que têm vindo a invadir apresentações de livros e criado listas de “terroristas LGBTI”.
Numa das edições das listas fui chamado de “pedofilo-terrorista” por um dos dirigentes do grupo que ontem invadiu a conferência. Rematava com um “ARBEIT MACHT FREI“, assim em letras garrafais para não esconder as suas origens. É este o novo normal?
E depois da invasão e da intimidação, o que nos sobra?
A conferência continuou, mostrando, pela própria circunstância, a importância da sua realização. Em março, fora do mês do orgulho, este momento assinala simbolicamente como os Direitos das pessoas LGBTI+ são, sim, desafiados todo o ano.
Fui a primeira pessoa oradora, em nome da ILGA Portugal, a falar após os distúrbios. E, num momento de união e comunhão, percebemos que toda a gente permanecia firme ali. E foi assim possível continuar um evento em que se falou, acima de tudo – e em especial acima de intimidações e ofensas – de desafios enfrentados pela comunidade, dos progressos alcançados nas últimas décadas e que precisam, hoje mais que nunca, serem protegidos e, tão ou mais importante por serem a base de tudo isto, de empatia e amor.
Talvez aqueles elementos se esqueçam – ou façam por esquecer – quando nos tentam cortar a liberdade que cortadas já nós, de uma forma ou de outra, fomos. Seja pelo regime do Estado Novo que criminalizava e perseguia a comunidade LGBTI+, seja por serem negados os direitos mais essenciais às mulheres (afinal de contas, também estamos em março), ou seja pelos crimes e discurso de ódio que continuam a crescer em Portugal e por todo o mundo contra minorias.
Talvez estes grupos se esqueçam que também nós já fomos crianças e jovens
Na sua alegada preocupação pelas crianças, que os faz invadir regularmente apresentações de livros infantis, esquecem-se também que já fomos crianças e jovens e que sabemos o impacto destruidor que aquelas ações e palavras têm. Muitas de nós vivemos, passado e presente, com a homofobia, bifobia e transfobia a serem-nos transmitidas aos ouvidos todos os nossos dias. Sabemos o seu peso. Sabemos o seu custo.
Desde cedo aprendemos a esconder-nos pelo que somos, a interiorizar toda a violência, a sobreviver a toda a vergonha. Aliás, um dos testemunhos da conferência, pela advogada Joana Cadete Pires, falou precisamente dessa dor. Mas também falou em como a superou com a ajuda de colegas.
Talvez por isso aqueles elementos se esqueçam – ou façam por esquecer – que a resiliência também nos está no sangue, está na comunidade e na rede que construímos por entre todos os desafios que nos fizeram passar. E esse é um laço que dificilmente é quebrado.
E talvez aqueles elementos se esqueçam – ou façam por esquecer – que foram eles que saíram e fomos nós que ficámos. Pessoas, Famílias e Instituições. Até ao fim.
As portas do emblemático salão nobre de um Estado de Direito continuaram abertas naquele fim de tarde para quem assim desejar viver. Venham.

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