Madonna, A Iconoclasta

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A associação de Madonna à comunidade gay é tão prevalecente que parece que sempre existiu. E a realidade é que desde tenra idade que foi abraçada por pessoas chave na sua vida que, por serem homossexuais, lhe abriram novos horizontes sobre o que era ser diferente e ensinaram-lhe como lidar com esses sentimentos de ostracização por não pertencer à norma e padrões ditados pelo patriarcado regente. Desde o início da sua carreira que luta incansavelmente pela igualdade entre géneros, religiosidades e orientações sexuais, mesmo quando isso era condenado pela sociedade no geral, história essa que pode ser mais extensamente acompanhada no artigo Madonna, Para Além do Nome.

Com 56 anos de idade e 32 de carreira, Madonna regressa com o seu 13º álbum de originais, Rebel Heart [link Spotify], indubitavelmente um dos mais significativos e marcantes de toda a sua discografia. Porquê? Porque tal como fez em toda a sua vida artística está a desafiar todas as regras. É um momento particularmente rebelde para Madonna: depois da grandiosa The MDNA Tour e das experiências traumáticas que colecionou enquanto viajou por um mundo cada vez mais complacente e opressivo, criou Art For Freedom, um manifesto pessoal e negro sobre a prisão recentemente edificada em redor da liberdade artística, indissociável da própria liberdade humana. Dessa semente de revolta e pavor do retrocesso social nasceu Rebel Heart.

O seu lançamento foi manchado por uma série de leaks extemporâneos de demos inacabadas meses antes do seu lançamento, tanto que em Dezembro obrigou Madonna e a sua equipa a alterar a estratégia e a libertar no iTunes meia dúzia de canções para tentar controlar uma situação de violação artística incomportável. Resultou na subida imediata das pré-vendas e das suas canções para o topo das tabelas. Mas só na passada segunda-feira, dia 9, o álbum foi lançado tal e qual era previsto.

Um total de vinte e cinco faixas originais na versão mais extensa do disco declara que Madonna raramente esteve tão prolífica. E a sua muitas vezes ignorada assinatura enquanto compositora, um dos maiores crimes cometido contra ela enquanto mulher, presente em praticamente todas as faixas. Independentemente do rol interminável de colaboradores para o disco, entre os quais Diplo, Kanye West, Avicci, Blood Diamonds e DJ Dahi, entre outros, as melodias em que assentam as produções são pura pop, desenhada com o rigor e coração que acompanha a sua música desde 1983. Não é difícil identificar em canções como a deliciosa Body Shop ou a arrasadora Ghosttown, segundo single, hooks ou bridges tão contagiantes e plenos de vitalidade criativa como aqueles que apareciam em Open Your Heart ou Drowned World/Substitute For Love.

E a dualidade de Rebel Heart é tão evidente no alinhamento do disco tal como o título o confessa. Existe em Madonna uma batalha constante entre o seu lado desafiante de guerreira inderrubável, sobre-humana e até arrogante em canções como Bitch I’m Madonna e uma melancolia e vulnerabilidade que roçam a profunda insegurança em Joan of Arc. E é extremamente reconfortante assistir ao cair da armadura e ver feridas tão ou mais profundas que aquelas que nos trespassam diariamente. Esse contraste é um dos pontos fortes e distintos desde disco em relação a todos os outros que já fez. Por cada sentimento de intitulada e merecida imortalidade presente em Veni, Vedi, Vici ou Iconic existe uma contradição tremendamente humana, uma serenidade quase anciã de um fim inevitável que não tardará a acontecer. O de aproveitar cada momento que pedimos emprestado de Borrowed Time ou o doce aceitar da morte derradeira em Wash All Over, como se as lágrimas invadissem um sorriso de satisfação por um vida preenchida.

E curiosamente é com a discriminação etária que mais se tem degladiado nos últimos anos e particularmente nesta era e na promoção da sua nova música. Durante longos anos Madonna trilhou caminho pelos direitos das mulheres e depois de tanto tempo continua a ser necessário e crucial fazê-lo. A maior crítica que se faz a este disco é dirigida a ela e não à música: aos 56 anos, Madonna não deve comportar-se desta forma. Não deve intercalar canções de profunda reflexão pessoal como a autobiográfica e comovente Rebel Heart com vápidas e quase adolescentes odes a sexo descomprometido como a herege Holy Water ou a voraz S.E.X. Não deve já apresentar-se visualmente com a mesma atitude provocatória que é aceite por mulheres mais jovens que seguiram o modelo que a própria Madonna revolucionou três décadas atrás. Devia prostrar-se ao que é socialmente aceitável esperar de uma mulher de 56 anos: uma discrição que se transforma inevitavelmente em invisibilidade. A própria tem abordado esse assunto de forma extremamente cândida e disse agora em entrevista à Rolling Stone que “as mulheres da minha idade aceitaram que não lhes é permitido comportar de certa forma. Nunca segui regras. Não vou começar agora”.

Não esperaríamos dela outra coisa. Em 2015 estamos prestes a assistir a outra Revolução. O Mundo que se prepare, as feridas estão cicatrizadas e a guerreira está mais perigosamente determinada que nunca.

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