
Madonna significa muita coisa diferente para muita gente. Quase quatro décadas depois do início da carreira, continua a ser debatido se possui algum talento, se detém alguma capacidade vocal, se tem qualquer dote musical de todo. Continua-se a atribuir-lhe sorte desmesurada em ter conseguido atingir esta longevidade, muitas vezes conferindo-lhe apenas a qualidade de saber reunir (ou foder) as pessoas certas. Não só é uma perspetiva tremendamente falaciosa, mas tremendamente machista. E cada vez mais idadista.
A realidade é que Madonna está de facto mais velha. Uma lesão contraída durante a porção americana de Madame X Tour forçou-a a cancelar um concerto em Miami e já outro durante a sua residência no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, no mês de janeiro. Assistimos ao concerto de dia 18 e, nele, ela confessou-se repleta de dores durante o mesmo. A sua resiliência infindável fê-la continuar e entregar-se de alma e – literalmente – corpo ao amor que lhe estava a ser devolvido pelo público desta cidade, que fez sua casa. Mas, desta feita mais do que em qualquer outro momento da sua carreira, a autopercepção da sua humanidade tornou-se totalmente mais palpável.
O que só fez desta Madame X Tour a mais vulnerável e humana de todas as suas opulentas ambições cénicas anteriores. Esta tour vem na senda do álbum que escreveu e gravou (pelo menos parcialmente) em Portugal e que já se tornou num dos mais reveladores e originais da sua carreira. De uma das alturas em que se sentiu mais isolada e fora do seu meio nasceu alguma da sua melhor arte. E dessa perceção do passar do tempo surge também uma das suas mais inspiradas tours e, indubitavelmente, a mais íntima.

A Madonna dos estádios retirou-se, pelo menos momentaneamente, para se aproximar do público num itinerário mais reduzido e em espaços mais pequenos. E essa aproximação não é meramente física, mas traduz-se também numa vontade de ser amada sem tantas luzes a ofuscarem-lhe a cara, a criar momentos em que se tenta ligar efetivamente ao seu público. Tanto isso é verdade que foi estritamente proibido o uso de telemóveis, com o uso de capas que impediam o seu manuseamento e com ele a perda de ligação com o palco e quem o pisava.
Madame X é uma personagem multifacetada e os segmentos do concerto, que durou quase duas horas e meia, aludiam a isso mesmo (uma espia, uma dona de casa de fados, uma sacerdotisa), mas os momentos mais comoventes foram os que reconheciam a própria mortalidade e o passar do tempo, talvez o tema mais central da música de Madonna. Aqui refletiram-se quando cantava “I Don’t Search I Find” enquanto era interrogada e torturada, ao rodar numa escadaria surrealista em contemplação da solidão em “Extreme Occident” ou quando fazia ecoar as palavras de “Frozen” no corpo da filha, Lourdes, que dançava num ecrã que cobria Madonna, transformando este clássico num lamento pelo que perdeu e a inevitabilidade de numa nova realidade.

Numa nota mais pessoal, foi surreal e enternecedor ver como Madonna celebrou a cultura lusa, com todas as suas mesclas, com amor e respeito e sem se apropriar dela, trazendo as pessoas que a inspiraram – e agora a acompanham ao vivo – para a frente de palco. Fossem elas as Batukadeiras de Cabo Verde, um grupo de percussão constituído por mulheres fortes que tocavam canções do tempo da escravatura; fosse na “Sôdade”, morna de Cesária Évora cantada com Dino D’Santiago, aquele que lhe apresentou as diversas sonoridades de Lisboa; fosse a própria guitarra portuguesa, envergada pelo talento incrível de Gaspar Varela, bisneto de Celeste Rodrigues, e com quem cantou tímida, mas emotivamente, um fado da bisavó. Esta naturalidade da partilha de palco, muitas vezes remetendo-se a um papel mais participativo, é algo que só surgiu em Madonna com a idade, uma humildade que só é possível pela maturidade que a permitiu construir um dos mais inspirados momentos artísticos da carreira em disco e, agora, em palco.
Inúmeros fãs, incluindo eu, se debatem com este envelhecimento do seu ídolo, demonizando-o muitas vezes e espelhando receios do envelhecimento que ele o faz ver neles mesmos. Mas é aí que Madonna, o último dinossauro de uma época de megaestrelas, se torna ainda mais cativante e… humana. E, ao aceitar o seu envelhecimento e celebrar o que ele traz – maior honestidade e abertura para com quem e o que nos rodeia –, faz-nos também aceitar o nosso.
Nota: Texto revisto pela Ana Teresa.
Os dias que antecederam o concerto de Madonna em Lisboa esteve em destaque no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️🌈, oiçam:
E, por fim, a passagem de Madonna por Lisboa com a sua Madame X Tour esteve em grande destaque no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️🌈, oiçam:
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