Foi divulgado ontem o parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) sobre a regulamentação da nova legislação para a Procriação Medicamente Assistida (PMA). No documento [pdf] o CNECV questiona se “estarão os direitos da criança, designadamente o direito à sua identidade pessoal, devidamente acautelados?“, concluindo que devem “prevalecer os interesses das crianças sobre quaisquer outros” quando em causa está a “origem parental“.
O CNECV continua:
Estará o Estado a cumprir os seus deveres no contexto do acesso e aplicação das técnicas de PMA não estabelecendo a prioridade do acesso por razões clínicas? (…) Cabe ao Estado estabelecer os critérios de acesso às técnicas de PMA e regular o seu uso, no estabelecimento de prioridades, em situações de recursos limitados, deve prevalecer a sua aplicação como tratamento de infertilidade.
O parecer – não vinculativo e assinado por quinze pessoas, sendo apenas cinco mulheres (!) – surge assim a público estando o novo regulamento para a PMA já em vigor. O argumento da “prevalência dos interesses das crianças sobre quaisquer outros” lembra-me o utilizado até à exaustão “superior interesse da criança” aquando da discussão sobre a adopção. E isso alerta-me, desde logo, para um sinal laranja, porque a questão não está na protecção primeira e unânime da criança, mas sim de quem define – e como – esse interesse. Ora, a origem paternal de uma criança que nasça através de técnicas de PMA é conhecida: a da mãe e do pai, a das mães ou a da mãe. Se a questão pretende focar-se na biologia, então onde anda a prevalência dos interesses das crianças sobre quaisquer outros quando estas nascem pelos meios, digamos, clássicos? Toda a criança teria, nesta lógica, o direito em saber com absoluta certeza se o seu pai é efectivamente o seu pai biológico. Mas pronto, se calhar sou eu que sinto um problema de princípio quando um parecer de um Conselho assinado por dois terços de homens levanta questões sobre paternalidade na nova regulamentação de técnicas de PMA e nunca antes das alterações agora feitas.
Mais, o parecer torna implícito que há famílias (e vontades de as ter) de primeira e de segunda, dando o argumento das prioridades. Ora, este Conselho volta a levantar problemas quando uma mulher, ou casal de mulheres, decide formar família de forma autónoma e independente de um homem. A questão das prioridades que beneficiaria os casos de infertilidade num sistema com recursos limitados, é, na realidade, uma não-questão. Porque a maioria das mulheres e casais de mulheres que pretende aceder à PMA não terá problemas de fertilidade, bastando assim ser realizada a técnica mais simples: a inseminação artificial. Os restantes casos de infertilidade – e onde obviamente existirão também casos de mulheres e casais de mulheres – são os mais complexos, demorados e dispendiosos. Argumentar que a entrada no sistema de mulheres e casais de mulheres irá, de alguma forma, fragilizá-lo, é ser desonesto em relação à validação destas famílias. Porque para nós, não há projectos de família de primeira e outros de segunda e cabe ao Estado proteger e fomentar a saúde de todas elas. De todas elas.
Nota: Vale a pena ler Miguel Vale de Almeida, Isabel Advirta e ainda Isabel Moreira sobre a notícia.
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