
Desde a semana passada que o tema dos cadernos de exercícios para “rapazes” e para “meninas” da Porto Editora tem estado em discussão na comunicação social e redes sociais. Se já era, logo à partida, questionável a separação por género num livro para crianças entre os 4 e os 6 anos, toda a polémica que se seguiu veio apenas alimentar o pior – mas também o melhor – de algumas pessoas sobre a questão da igualdade de género.
Depois da denúncia feita, secundada por várias pessoas, homens, mulheres, feministas, o jornal Público noticiou no dia 22 que a CIG – a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género – estava a averiguar o caso depois de ter recebido “muitos alertas”. Nessa mesma notícia, a jornalista Clara Viana diz ter averiguado ambas as versões e concluiu que “no conjunto das 62 actividades propostas, existem 6 cuja resolução é mais difícil no livro dos rapazes e 3 que apresentam um grau de dificuldade superior no das meninas“. Mas não apenas isto, “a maior parte das actividades reproduzem uma série de velhos estereótipos“, sendo que “o universo caseiro do lar surge muito mais associado ao género feminino do que ao masculino“.
A Porto Editora reagiu negando “discriminação e preconceito” nas suas edições. Aliás, “DE TODO“.
No dia seguinte, 23 de agosto, a CIG emitiu um comunicado em que “recomendava à editora que retirasse dos pontos de vendas os livros de exercícios diferenciados para rapazes e raparigas“, dado que a dupla edição “acentua estereótipos de género que estão na base de desigualdades profundas dos papéis sociais das mulheres e dos homens“. Após a recomendação, a editora decidiu acatar a proposta feita e anunciou que iria reunir com a CIG de forma a “trabalhar em conjunto com as autoras dos blocos de atividades que originaram a polémica, no sentido de rever os exercícios que possam ser considerados discriminatórios ou desadequados.”
Apesar da discussão intensa que ainda ocorria, este parecia ser um assunto prestes a desaparecer dos jornais e caixas de comentários. Acontece que na madrugada de domingo, dia 27, e em pleno Governo Sombra, Ricardo Araújo Pereira decide pegar no tema e, com ambas as versões dos livros a seu lado e, em estilo de colocar em pratos limpos a questão, mostra vários exemplos dos exercícios para “rapazes” e “meninas”.
Qual justiceiro, Ricardo – de quem sou fã do seu trabalho humorístico há largos anos, atente-se – aparenta desmontar todo o truque da polémica. Afinal, segundo ele, os livros apresentavam exercícios de dificuldade semelhante quer para meninos como para meninas, apenas mudava o seu conteúdo. As meninas eram as intelectuais que iam a museus, já os meninos eram, afinal, as bestas que olhavam “para prédios na Brandoa“. O que estava a escapar em toda a apresentação bem estudada do Ricardo eram, desde logo, todos os estereótipos para meninos e meninas que os vários exercícios usavam, era o rosa para umas, o azul para outros, o uso de termos como “rapazes” e “meninas”, era, muito simplesmente e ali à frente de toda a gente, a existência de dois livros que segregavam em vez de unir.
O episódio foi imensamente partilhado nas redes sociais, utilizado como forma de refutar as acusações que a Porto Editora recebera dias antes e, por arrasto, questionar a validade da recomendação da CIG – entidade que, para quem for mais distraído como o João Miguel Tavares, comemora 40 anos de existência. Aliás, a própria editora fez questão de partilhar o vídeo de Ricardo Araújo Pereira, considerando ser “pertinente” fazê-lo. No final, a Porto Editora agradeceu com um “obrigado“. Irónico lapso de concordância de género?
Dia 29, a CIG publicou o parecer técnico que fundamenta a recomendação feita à Porto Editora. Nele é reiterado tudo o que foi escrito desde o início. Para a CIG, “a primeira reflexão sobre estes blocos prende-se com a própria existência de dois blocos”, uma segregação que “não permite que as meninas tenham acesso às actividades que são propostas para os rapazes, e vice-versa, reforçando assim as mensagens que são transmitidas a cada um dos sexos”. O parecer sublinha que essa segregação é reforçada quando “o bloco dos meninos não prevê interacção com meninas, e vice-versa”.
A Comissão para a Igualdade aponta ainda que as ilustrações diferentes, assim como a “escolha diferenciada do tipo de actividades a desenvolver por meninas e meninos”, reforçam estereótipos de género que “pré-definem o que é suposto ser e fazer um rapaz e uma rapariga”.
E quanto ao grau de dificuldade dos exercícios que foi, afinal, o que fez surgir toda a polémica? A CIG conclui que, “do total das actividades propostas, 6 têm resolução mais difícil no bloco de actividades para meninos, enquanto apenas 3 têm resolução mais difícil no Bloco de Actividades das meninas”, o que “poderá reforçar a ideia de que há desigualdade nas capacidades cognitivas de meninos e meninas“.
O parecer técnico termina ainda com a recomendação “que se adopte apenas um bloco de actividades para crianças dos 4-6 anos, para que todas possam praticar todos os exercícios de igual forma”.
Depois de toda a discussão que houve, há alguns pontos que julgo serem importantes destacar. Primeiro, depois da denúncia feita, a investigação feita pelas jornalistas – humorista à parte – confirma-se e é reforçada pelo parecer técnico da CIG. Existe efectivamente uma segregação forçada e baseada em estereótipos que minoram o potencial de desenvolvimento das crianças.
Quando discutimos com outras pessoas, por mais que discordemos delas, importa que não tomemos uma posição – arriscarei escrevê-lo – paternalista. Os argumentos que temos por base das nossas convicções deverão ser suficientes para fazer passar a mensagem que queremos transmitir. Repito-me, seja ela absolutamente oposta da pessoa com quem discutimos. Como tal, dificilmente acharei de respeito alguém considerar a defesa daquilo que acreditamos e defendemos uma “obsessão a roçar a histeria” e que tudo isto não passa de “um mero capricho de meninas burguesas e mimadas e com complexos frustracionais de culpa pelas suas vidas de privilégio“. Não deixa de ser absolutamente irónico que, ao discutir-se a igualdade de género, se consigam usar termos destes. A discussão assim não é séria e, mais uma vez, as maiores vítimas são as mulheres, porque quando estas denunciam misoginia e lutam por educação em igualdade são logo depois acusadas de histerismo, de caprichosas e mimadas.
Como LGBTI, aliás, “idiota útil“, dificilmente poderei baixar braços numa luta que acredito ser de toda a sociedade e, como tal, também minha, também nossa. Se, aliando-me à luta feminista, arrisco “alienar a ampla maioria da população moderada que nestes anos tem aprendido a acolher-nos e a alargar a todos os mesmos direitos cívicos“, então é porque deixei de acreditar numa sociedade mais justa para todos e todas nós, homens e mulheres, Hétero e LGB, Cis e Trans. Não acredito em lutas por metade, porque acredito que uma parte de nós acaba sempre por ficar pelo caminho. E por isso vale a pena arriscar. Para que ninguém fique para trás, para que o preconceito não se repita, para que a fobia não se perpetue.
Revendo-nos – ou não – na forma como é feito o ativismo feminista, ao usarmos esta linguagem não é seguramente feita uma discussão entre iguais. Sim, há incoerências. Sim, há prioridades. Sim, há formas de reivindicação que podem – e devem até – ser questionadas, como a recomendação de retirada dos livros, por exemplo. A mim faria muito mais sentido que fossem simplesmente recomendados alguns títulos que respeitassem as indicações dadas pela CIG (e ao contrário dos dois livros em questão), não a sua retirada.
Como homem feminista, é-me difícil deixar passar igualmente o significado que se esconde por trás da palavra ‘histeria’, palavra que é recorrentemente usada para desprezar e silenciar os argumentos dados por mulheres: ‘útero’. Existe, de facto, uma ‘obsessão a roçar o útero’, símbolo – não absoluto – da mulher. Não poderia concordar mais. Histeria capaz.
Nota: Aproveito para deixar uma recomendação de humor, desta vez a cargo d’A Porteira com o hilariante “É pró menino e prá menina“.
Atualização 11/09/2017:
Após reunião entre CIG e a Porto Editora, ambas lançaram comunicado conjunto onde garantem que “vão trabalhar em conjunto na produção de materiais dirigidos a crianças, integrando abordagens promotoras da cidadania e igualdade de género.” Desta forma pretendem desenvolver, “em estreita colaboração, conteúdos que fomentem uma educação promotora de igualdade de oportunidades e do desenvolvimento das diferentes capacidades e talentos de todas as crianças, contribuindo assim para a construção de uma sociedade em que mulheres e homens exercem uma cidadania plena.”
Polémicas à parte, toda a discussão deu resultados concretos que importam igualmente ser acompanhados pelas restantes editoras. Por uma educação em Igualdade.
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