Na última quinta-feira, dia 6 de dezembro, tive a oportunidade de assistir ao Encontro Nacional Conhecer para Proteger – Promover os Direitos das Crianças e Jovens LGBTI, organizado pela Casa Qui e pela Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens. Foi uma ótima oportunidade para ouvir especialistas nacionais e internacionais nesta área e refletir sobre temas que só recentemente começaram a ser seriamente tratados em Portugal.
Ter voz e espaço é algo que a Comunidade LGBTI tem conquistado lentamente, capacitando-se e afirmando-se cada vez mais na sociedade. Uma conquista que, no caso das crianças e jovens, é muito mais difícil de trilhar. Porque junta a impotência da infância e da menoridade à discriminação e ao preconceito. Instituições, técnic@s e famílias têm ainda poucas ferramentas para lidar com essas questões em geral e ainda mais quando associadas a crianças e jovens.
Foi por isso fundamental este Encontro, que com certeza dotou mais gente de novas e melhores ferramentas para lidar com situações com crianças e jovens LGBTI e, a um nível muito mais básico, as terá até colocado em contacto com realidades, conceitos e caminhos que desconheciam.
Eu não sou técnica, não trabalho com crianças ou jovens, sou uma interessada e uma ativista. Falar de crianças e jovens LGBTI é, num certo sentido, falar de mim e de toda a gente na minha comunidade, nos momentos em que estivemos mais frágeis e mais expost@s ao poder da discriminação e da violência, incluindo a auto-perpetrada.
Porque, se as crianças são uma das populações mais vulneráveis, quando são crianças e jovens LGBTI essa vulnerabilidade agudiza-se, criando um quadro com especificidades muito próprias, a que é preciso responder.
Essa foi sem dúvida uma das conclusões do Seminário do encontro a que assisti (não tive oportunidade de participar nos workshops). Há uma violência que é preciso encarar na sua especificidade e que se for tratada como as demais corre-se o risco da revitimização, aumentando o perigo e a situação de crise.

Num programa composto por dois painéis principais, um internacional e outro nacional, a partilha de práticas foi fundamental. Não querendo fazer um resumo do seminário, gostaria sobretudo de evidenciar os pontos-chave para mim. Na participação de Kirsten Sandberg, especialista e membro da Comissão dos Direitos das Crianças das Nações Unidas, tivemos uma visão bastante global de como esses direitos estão a ser defendidos, a um nível mais institucional e diplomático, e no terreno pelas organizações representadas no painel internacional. No caso das Nações Unidas, existem diretrizes claras (e outras mais abrangentes) na defesa das crianças (até aos 18 anos) LGBTI, cuja força pode ter mais ou menos impacto conforme a anuência dos países às recomendações. Mas sobretudo essas recomendações só podem existir se as associações ou os Estados reportarem efetivamente o que está a acontecer nos países a esse nível. Kirsten enumerou uma série de países que não tinham quaisquer recomendações ao nível dos direitos das crianças LGBTI e isso, como bem sublinhou, não se deve a um cenário impecável, mas sim à ausência de relatos e de registos sobre os quais a Comissão possa recomendar. Só com uma voz ativa, pode haver escuta.
Isso tornou-se ainda mais claro quando Sarah Blakemore, da organização Keeping Children Safe, referiu como, em determinados países que visita, as questões LGBTI nem sequer são consideradas – “no nosso país, não temos esse problema. É uma questão ocidental”. A invisibilidade é, em todo o mundo, um dos paradigmas a combater. Sem conhecimento, sem informação, se nem sequer se reconhece o problema, como podemos encontrar soluções?
Nas palavras de Ruben Ávila, da IGLYO, as escolhas inclusivas, as soluções para as crianças e jovens LGBTI, não são simplesmente uma questão de querer, são uma necessidade real e global. Pois, tal como disse Leigh Fontaine, do The Albert Kennedy Trust, uma necessidade criada também porque as pessoas, as instituições, os serviços que deviam proteger esta população são muitas vezes os mesmos que a colocam em maior risco.
É por isso que este tipo de encontro é tão fundamental, assim como todo o tipo de formação neste área que se possa dar a profissionais que lidam com crianças e jovens. No painel nacional, pudémos ouvir o testemunho de representantes da rede ex aequo, da AMPLOS e da Casa Qui, associações que disponibilizam exatamente esse tipo de formação e apoio no terreno. Nas escolas, com as famílias, nas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, onde é necessário atuar ao nível mais básico, apoiando vítimas, prevenindo agressões e violência, protegendo aqueles/as que estão mais expost@s.

É notável poder testemunhar o trabalho diário e perceber o impacto que pode ter junto das pessoas, seja a um nível coletivo ou individual. Alguém perguntava na plateia como dar visibilidade e trazer estas questões para uma esfera mais abrangente, para a “opinião pública”. É sem dúvida uma questão importante. Mas o maior impacto é muitas vezes feito assim, um/a a um/a, audiência a audiência, sala de aula a sala de aula, coração a coração.
Aconteceu-me a mim também. Num encontro como este, na Conferência Ao teu lado, nas comemorações do 5º aniversário da AMPLOS em 2014, quando ouvi pela primeira vez em primeira mão relatos de crianças trans e como isso mudou a minha visão sobre as questões de género. Por coincidência, no Encontro da semana passada, Manuela Ferreira da AMPLOS referenciou essa mesma conferência e essa mesma história e como foi marcante também para a associação. A mudança terá acontecido também na quinta-feira a alguém que entrou no Encontro organizado pela Casa Qui a saber pouco ou nada sobre essas questões. Acontece-nos a tod@s quando ouvimos.
É assim que as mudanças acontecem. Quando algo nos toca, quando tocamos n@ outr@, construindo ligações, elos vitais para a transformação mais profunda, a de perspetiva e de narrativa. Quando ouvimos um ponto de vista novo pela primeira vez, quando descobrimos aquilo que desconhecíamos, quando derrubamos os nossos próprios muros e preconceitos. Numa altura de nov@s fascistas e de renovadas intolerâncias, como salientava alguém da audiência, há que saber chegar a mais gente, ter mais aliad@s: só através da nossa própria história, só criando elos de reconhecimento, só empatizando podemos criar a mudança. Comecemos por ouvir, por falar, por estar presentes. Começa-se assim, num encontro, num momento, numa troca de histórias. Ainda bem que há quem as conta, ainda bem que há quem as escuta.