Querido Diário… normal, anormal ou paranormal?

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I am not okay with this é mais uma adaptação televisiva de uma novela gráfica de Charles Forsman, depois de The end of the f***ing world, tendo ambas as séries o mesmo realizador. Podemos por isso esperar um ambiente negro semelhante, com personagens navegando em caminhos tortuosos e, sim, adolescentes desajustados e aparentemente desadequados. Acrescente-se a isso uma camada de ficção científica e temos, como disse o Luis, a filha bastarda dos Strangers Things com o The end of the f***ing world. Quanto a mim, é melhor do que qualquer um deles, mas eu sou suspeita, porque 1) não gosto de sentir terror e o Stranger Things está cheio disso, 2) do que me recordo do The end… quase não senti empatia apenas um mal-estar geral e 3) o I am not okay… tem a extra camada de ser conteúdo LGBTI. Aliás, dentro do incrível universo de produções da Netflix com adolescentes, só falta mesmo o Sex Education  reclamar a terceira parte da parentalidade deste I am not okay with this. E é nesse campo da aprendizagem que esta série brilha mais. 

Sim, são adolescentes a viver dias difíceis de auto-descoberta. A nossa personagem principal sente-se uma aberração, bizarra, estranha e, claro, pouco amável. “Quem é que alguma vez poderia gostar de mim?” é apenas mais uma segunda-feira para qualquer adolescente. Não?

Digamos que, no caso de Sydney, a personagem principal, não é para menos. Além da necessária awkwardness que nos faz amar personagens adolescentes (veja-se por exemplo Casey Gardner no Atypical), tem também um cenário doméstico bastante desafiante, com responsabilidades extra com o irmão mais novo (mais uma achega à Casey), uma relação problemática com a mãe e um pai morto sob circunstâncias muito perturbadoras. Acrescente-se a isso a descoberta de uma sexualidade não normativa e, ta-da, uns incontroláveis super-poderes.

Incontroláveis super-poderes numa adolescente com problemas de raiva, insegurança e poucas capacidades sociais? Combinação perfeita. É como se estivéssemos a assistir à génese de uma super-heroína dos desastres. Mas, tal como Stanley (o quase co-protagonista e um par à altura de Sydney), só conseguimos ver como ela é fantástica.

Nesta série, a suposta normalidade está tão a milhas das nossas duas personagens centrais que é difícil apontar qual o aspeto mais importante em termos de identidade na sua criação. A questão da sexualidade L/B não é nuclear, embora seja mais um elemento decisivo para o auto-reconhecimento de Sydney. Não é à toa que a série começa com o surgimento desse “Querido diário” na vida dela, pois será através dele que Sydney se poderá guiar no aparente caos que é a sua vida – a cada novo elemento destabilizador, ela encontrará mais ferramentas para se descobrir.

O caminho de Sydney é um combate consigo própria, tentando ocultar e negar a si mesma o caráter único da sua identidade – num auto-ódio que vai para além de homofobia internalizada, que aqui é minimizada pelas outras características da vida dela. A questão dos super-poderes vem acompanhada de desconhecimento e ignorância e é por isso que esse processo é tão apaixonante, porque Sydney não sabe nada sobre si e aquilo que antevê provoca-lhe terror. Em contraste com Stanley, uma personagem que abraça a sua diferença apesar da agressão externa, numa auto-aceitação libertadora. Esta personagem acaba também por ser um elemento fundamental para a questão de expressão de género que está igualmente presente em Sydney – ambos são acossados por não responderem aos códigos convencionais. Todas as personagens secundárias, em que se inclui Stanley, a melhor amiga Dina e o namorado Brad, acabam por ser um espelho e um motor das descobertas e dos pontos críticos do caminho de Sydney.

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Até à sequência final da temporada (com cujas imagens vamos contactando ao longo de todos os episódios), todo o percurso de Sydney é feito de situações críticas que a aproximam cada vez mais da sua verdade. E uma das coisas notáveis desse percurso é que essas crises não se traduzem (ao contrário de outras personagens adolescentes das séries mencionadas) em momentos de apaziguamento para ela ou para nós – pelo contrário, são pistas perturbadoras para o que se adivinha um final explosivo.

Em todo esse caminho, estamos lá para a acompanhar, umas vezes espantando-nos, noutras rindo, noutras empatizando. São sete episódios de uma jornada imperdível, com um final que nos deixa de boca aberta, abrindo-se também a porta para tantas novas possibilidades.


A Ana Vicente esteve à conversa no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈 em que falou sobre I’m Not Okay With This, oiçam: