Circus of Books e a Importância Histórica dos Nossos Espaços Seguros

Muitas vezes falamos dos aliados da comunidade LGBT como se fossem um coletivo mais ou menos homogéneo quando a realidade não podia estar mais distante disso. O mais frequente é elas e eles surgirem de um contacto pessoal com alguém próximo que revelou as suas dificuldades e batalhas. Mas, de quando em quando, surgem histórias de alianças verdadeiramente insólitas. É o caso deste Circus of Books, novo documentário da Netflix produzido por Ryan Murphy (imparável com Pose e o novo “doc” A Secret Love) e realizado por Rachel Mason. E é nada mais nada menos que a história dos pais da última, Karen e Barry Mason, casal típico de ascendência judaica que cria os três filhos na Los Angeles dos anos 80. Mas esconde deles a raiz do seu negócio, uma livraria modesta em Sunset Boulevard que (mais ou menos) secretamente vendia pornografia gay. 

Esta história deixa de ser típica logo desde início, quando uma jornalista e um inventor abandonam as suas carreiras para perseguir uma oportunidade de negócio com Larry Flint e a sua heterossexual Hustle, numa altura em que existia uma cruzada conservadora contra a pornografia por parte da administração de Ronald Reagan. Flint tinhas outras revistas e começou a expandir para o público homossexual masculino. Assim se inaugurou [tens o verbo começar mesmo aqui à frente. Isto é só uma sugestão.], acidentalmente, o negócio de Karen e Barry na pornografia gay, começando por revistas e livros e acabando por se especializar em filmes de produção externa (e depois própria!). Circus of Books tornou-se o epicentro da vida gay em West Hollywood, numa altura em que o cruising era das poucas oportunidades de homens procurarem sexo com outros homens (o beco por detrás da livraria era conhecido como Vaseline Alley).


O documentário esteve em destaque e em discussão no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈, oiçam:


Esta família “convencional” escondia a verdadeira orientação do seu negócio de todos os vizinhos, familiares e amigos, mas eram uma mais-valia incrível para a comunidade, empregando sempre pessoas queer (entre as quais a drag queen Alaska Thunderfuck, entrevistada para o documentário) e proporcionando um escape para clientes que se encontravam alienados da sociedade numa altura em que eram perseguidos pela polícia e vistos como doentes mentais. Circus of Books é, na realidade, a história de uma comunidade contada via um negócio para ela dirigido, desde a abertura até ao seu fecho recente, consequência inevitável da internet e do mundo obsoleto da pornografia não digital. A loja vê passar por ela homens que se emanciparam numa altura em que era impossível fazê-lo. E viu também homens morrerem com a terrível epidemia do VIH durante os anos 80 e 90, um dos momentos-chave da história deste negócio e do casal que o geria. 

Stryker Force, um dos grandes êxitos produzidos por Karen e Barry

Apesar de estar em contacto direto com a comunidade, existiu sempre uma atitude do casal meio alheada dos pormenores da sexualidade gay, que na realidade estavam a fomentar. Numa cena insólita, Karen olha para um mostrador de dildos e sabe que os seus clientes iriam gostar, mas não percebe nem sabe explicar bem porquê. Ou não quer. Apesar de Barry ser bastante liberal, Karen é muito religiosa e, por momentos, temeu que Deus a estivesse a castigar pelo pecado profissional quando soube que um dosfilhos era gay. E apesar de aceitar sem complexos os clientes, o mesmo não foi igual com o filho, uma história demasiado comum e complexa em famílias no contexto de pessoas LGBT. 

Este documentário, leve em momentos e reflexivo noutros, é um delicioso documento de um negócio familiar que se tornou obsoleto. Mas que significou muito para muita gente e não deixa de ser um marco histórico no combate à discriminação e na luta pelos direitos das pessoas LGBT. Nunca nos esqueçamos de Circus of Books e dos nossos lugares simbólicos porque eles são muito mais que uma prateleira carregada de filmes do Jeff Stryker ou do Lukas Ridgeston. São alegorias da nossa evolução enquanto comunidade e devem ser protegidos ao máximo. Porque nem todos nós avançamos ao mesmo tempo, e não podemos jamais deixar para trás os homens e as mulheres que traçaram o caminho necessário e frequentaram lugares proibidos para hoje podermos ligar uma aplicação e encontrar alguém do outro lado. Vejam!

Nota: Texto revisto pela Ana Teresa.