
Conheci Ratched na juventude, o cinema desde cedo foi um dos refúgios que encontrei quando ficava sozinho em casa nas férias. O meu pai e a minha mãe trabalhavam durante o dia, e eu, filho único, numa cidade que ficava deserta nos meses de maior calor, passava os dias embrenhado na cinemateca que tinha em casa. Numa altura em que não havia cultura tão disponível como hoje em dia – e a internet ainda levaria mais de uma década a chegar às casas das famílias portuguesas – passava os dias e as tardes com aquelas cassetes VHS. Eram centenas delas, cada uma com pelo menos um filme. Sabia que havia filmes que não podia ver, seriam violentos ou simplesmente inapropriados para uma criança com oito, nove, dez anos. Mas eu, às escondidas, via-os a todos. Sobrevoando um Ninho de Cucos foi precisamente um desses filmes e vi-o e revi-o vezes sem conta.
O filme, baseado num polémico clássico da literatura norte-americana por Ken Kesey, conta como Randle McMurphy fingiu problemas de saúde mental para escapar a um julgamento. É nesse processo que entra numa instituição liderada pela Enfermeira Mildred Ratched e percebe a forma como ela manipula os doentes internados. Com a desculpa de uma cega moral perante as vontades e desejos daqueles homens de quem era suposto cuidar e tratar, o livro mostrou o perigo do poder absoluto numa altura em que a saúde mental era especialmente incompreendida e menosprezada. A Enfermeira Ratched impunha duramente a sua lei, a qualquer custo, para controlar aqueles homens hospitalizados. E foi precisamente a sua sobriedade e calma que, através de jogos psicológicos de humilhação, a tornaram num ícone como vilã da literatura e cinema do século XX. Ela estaria apenas a fazer o seu trabalho, mas sem qualquer empatia ou respeito por aqueles que tinha a obrigação de proteger. A capa da sua imaculada e superior moralidade era o inferno que impunha a todos os que a desafiavam e fugiam, por pouco que fosse, à rigidez do seu controlo.

Ao lado de Jack Nicholson (Randle), Louise Fletcher venceu um Óscar da Academia pela sua interpretação de Ratched no grande ecrã em 1975. Foi assim que vi então pela primeira vez aquela personagem tão cruel como fria e me questionei: como pode alguém assim ser?
Ora, é precisamente a resposta a essa questão que a série Ratched, da Netflix, tenta dar numa grande produção de Ryan Murphy (Glee, American Horror Story ou Pose) e que traz desta vez a tremenda Sarah Paulson no papel da Enfermeira, mas com ela também um notável elenco como Cynthia Nixon, Judy Davisou Sharon Stone.
Recuamos assim mais de uma década, para o final dos anos 1940, e tentamos conhecer melhor Mildred Ratched e, na realidade, perceber como chegamos à personagem que nos foi dada a conhecer no livro e no filme. É verdade que desde cedo percebemos que Ratched é uma fraude, não é sequer enfermeira, mas infiltrou-se no exército estado-unidense durante a II Grande Guerra e cuidou de militares ensanguentados, matando alguns deles, os irremediavelmente destroçados. Foi também aí que ganhou a alcunha, pelos próprios nos seus últimos instantes de vida, de Anjo Misericordioso.
Após o final da guerra, tal como no filme original, encontramo-la a entrar numa instituição psiquiátrica que utilizava tratamentos tão inovadores como experimentais. Não deixa de ser curioso como num dos episódios é mencionado o Nobel português da medicina Egas Moniz pela descoberta da lobotomia, tratamento hoje em dia, e há muito, descreditado. É neste hospital, ao contrário do do filme original, que acontece a maior parte da ação, inundada de luxo, espaços amplos, largas paredes vidradas e coberta de veludo e castiçais. Toda a série, aliás, conta com uma imagem de cores saturadas, por vezes excessivas, espelho dos estados de espírito das suas personagens. Também elas, por vezes, excessivas.
É precisamente nessa ténue linha que se movimenta Ratched, tentando salvar alguns dos pacientes ao mesmo tempo que mostra o caminho para o suicídio a outros. É um jogo perigoso e mais o é quando surge a questão da homossexualidade, em especial o foco no «lesbianismo», que o hospital aborda com tratamentos de choque e banhos de água a ferver contrastados com banhos de água em gelo. Tortura, portanto, numa altura em que a orientação sexual ainda era vista tanto como uma doença, vergonhosa e perigosa. Algo que deve ser escondido e tratado.

Ratched, percebemos logo, vive apavorada a fugir de desejos que considera impróprios. Envolve-se com um homem, mas é a visão de Gwendolyn Briggs, secretária do Governador que pretende financiar o hospital, que lhe surge e a deixa aterrorizada. Ela eventualmente ultrapassa – imagino que tal como a maioria de nós – os demónios e preconceitos contra a sua própria natureza e contra quem ama e, com isso, não deixando de ser uma vilã, é uma vilã com uma história.
A Enfermeira Ratched e Sarah Paulson estiveram em discussão no Podcast dar Voz A esQrever 🎙🏳️🌈, não percam:
Já por aqui falei de personagens vilãs queer, uma das técnicas mais usuais na cultura moderna para dar uma tonalidade – lá está – estranha e como isso, quando usada vezes sem conta, acaba por moldar tanto a perceção de quem é pária, como a da população sobre uma minoria. Mas, no caso desta série, não deixamos de – e de alguma forma – torcer por Ratched. Porque, sem a desculpar, a sua história também é nossa, também vivemos os mesmos receios, as mesmas hesitações, desejos, é com ela que partilhamos o primeiro beijo com alguém que realmente desejamos beijar livre e orgulhosamente. É com ela que seguimos o seu caminho e, mesmo sabendo que o futuro possa não ser brilhante, seguimos o seu percurso como se assim lhe pudéssemos transmitir alguma da empatia que sabemos lhe fará tanta falta no futuro. É por não querermos voltar a viver tudo o que ela viveu, por não querermos ser mais uma vez negadas e ser mais uma vez violentadas que, no final, aprendemos a amar uma vilã como só Ratched consegue ser.
Nota: Texto revisto pela Ana Teresa.
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