Quantas vezes entramos numa conversa pela promoção do conflito?
Nos dias que correm em que estamos – ou deveríamos estar – mais por casa, as redes sociais são muitas vezes a única janela que temos para o mundo. Interagimos mais enquanto a nossa paciência, por toda a circunstância pandémica, diminui. A radicalização das ideias alimenta-se disso, mas esse confronto também pode rapidamente tornar-se num vício. Do lado de lá, mas também do lado de cá.
Não estou com isto, obviamente, a confundir extremismos, mas a tentação de responder a toda e qualquer provocação parece ser o que une ambos os lados das trincheiras. Aliás, quantas vezes seremos nós responsáveis pela colocação das mesmas? Se não inteiramente, pelo menos teremos custódia partilhada pelas linhas vermelhas que traçamos. E, sim, há linhas vermelhas que são necessárias, mas a forma como agimos sobre elas deve ser protetora e construtiva e, ainda que não seja essa a nossa intenção e o façamos de forma inconsciente, não tóxica e destrutiva. Contra aquelas pessoas, mas também contra nós mesmas.
Podemos pegar de muitas formas na forma como abordarmos esta questão. Que escolhas devemos tomar quando presenciamos discurso de ódio – seja ele racista, xenófobo ou LGBTIfóbico? A quem respondemos? E, se acharmos realmente premente, como o fazemos?
“És um facho do c*ralho!”
Não há respostas únicas aqui, eu próprio tenho tentado ajustar a minha forma de lidar com estes desafios nos últimos anos através de conversas com pessoas muito distintas entre si. Com elas percebi haver também uma imensidão de estratégias. Estas passam por bloquear ou silenciar um determinado grupo de pessoas por completo, e as razões podem ser a diminuição dos níveis de ansiedade ou simplesmente não querer ler discurso de ódio constante nas redes sociais. Ambas, obviamente, válidas.
Outras preferem desmontar a argumentação – ou falta dela – populista, manipuladora e enganadora que o lado de lá usa. Mas o que nos resta do lado de cá? Para quem falamos e com que efeito? É que, pela experiência que tenho tido – e repare-se que já fui alvo de um ataque em matilha online levado a cabo por dirigentes de um partido e seus trolls e bots de serviço –, nada passa. Quando respondemos estamos a cimentar as ideias que temos sobre determinados assuntos e não propriamente a questionar ou participar numa discussão com pessoas cujas ideias chocam com as nossas. Até porque, dentro daqueles círculos, são realmente poucas as que estão verdadeiramente interessadas no diálogo, a lógica é – lá está – a da matilha, que tudo faz para proteger o seu líder e os seus interesses. E, se do lado de cá conseguimos organizar ideias e estruturá-las de forma a apresentá-las de uma maneira clara a outrem, a verdade é que estes confrontos nos obrigam a questionar aquilo que julgávamos estar social e politicamente cimentado. Por que raio temos de explicar, em pleno século XXI, que a segregação étnica é errada, ou o insulto racista contra uma deputada não é liberdade de expressão, ou que cortar uma mão, um útero ou uma vida é violação dos direitos humanos?
“Estas feminazis burras acham-se as maiores!”
O lado de lá está constantemente a tentar-nos com a maçã, a provocar-nos naquilo que sabemos ser uma ferida a sarar ao longo dos tempos, seja ela de teor machista, racista, xenófobo, LGBTIfóbico ou qualquer outra temática que remeta para o preconceito mais básico que temos dentro de nós. Porque, tal como a vacinação tão em voga nestes dias, e embora estejamos a caminhar esse sentido, ainda não ganhámos imunidade contra eles. É um processo lento que poderá levar décadas ou séculos, mas que pode ser acelerado com políticas que promovam a igualdade e a liberdade, como uma educação que não se iniba de criar laços e pontes entre jovens e as suas famílias. Destruir todo o trabalho que foi feito até aos dias de hoje é recuar décadas num esforço que a sociedade tomou como seu, pelo que é certo e pelo que a protege na sua variedade e no seu todo e não a limita a conceitos tradicionalistas e a grupos privilegiados.
O lado de lá alimenta-se assim do medo – e nisto uma pandemia veio mesmo a calhar nesta espécie de tempestade perfeita política em Portugal – e, vistas bem as coisas, no resto do mundo, nem percebemos como demorou tanto a cá chegar. Diz aquele lado que a culpa é da classe política, das comunidades ciganas ou LGBTI, de imigrantes, de movimentos antirracistas, quando, na realidade, apenas se interessa por destruir um sistema de que beneficia e aponta o dedo a minorias e grupos historicamente perseguidos para alimentar uma retórica de medo e de caça às bruxas. A sua organização online tem tido um forte contributo nestes ataques. Além das redes sociais clássicas, há grupos fechados no Messenger e no Whatsapp em que é trocada informação de forma a que as pessoas que neles participam possam atacar em grupo determinada pessoa ou instituição. Diria até que se focam no indivíduo, porque é muito mais fácil de manipular um ataque visceral a uma cara do que a uma entidade em abstrato. A eficiência do ataque assim o dita. E assim o fazem, dia após dia.
“Partia a cara toda à TERF de m*rda!”
O que nos resta então fazer do lado de cá? Primeiro que tudo, importa percebermos se estamos a promover uma discussão ou efetivamente um conflito que servirá apenas um dos lados. O de lá. Ao respondermos a toda e qualquer provocação corremos o risco de nos estarmos a iludir de que vencemos uma discussão quando, na realidade e mesmo que inconscientemente, apenas tenhamos alimentado uma lógica de confronto boçal e, pior, alimentado um sistema que vive disso. Da nossa reação, da nossa resposta, da validação que lhe damos quando partilharmos, voluntariamente, o mesmo espaço.
É esta a clara lógica de normalização do conceito de “ambos os lados” ou “de ambos os extremos” ou do “condeno tanto a extrema-direita como a extrema-esquerda”, que é uma forma dissimulada de, na realidade, dizer que “há pessoas de bem em ambos os lados”. Trata-se, pois, de uma simplificação obscena que pretende colocar ao mesmo nível quem defende, por exemplo, a punição de mulheres que pretendam interromper voluntariamente a sua gravidez com, sei lá, a nacionalização da EDP ou dos CTT. Vou escrever mais uma vez: quem é que, havendo a mínima seriedade argumentativa, coloca ao mesmo nível ético e político, repito, a punição de mulheres que pretendam interromper voluntariamente a gravidez com a nacionalização da EDP ou dos CTT? A resposta estará provavelmente na palavra “seriedade”. E, então, para quê entrar numa pseudo-discussão se não há ali seriedade? Onde está o benefício?
No que toca às redes sociais, ao interagirmos diretamente com aquelas contas – sejam likes, dislikes, partilhas, respostas – , estamos a dizer ao algoritmo que aquela publicação gera interesse e tráfego, por isso a rede social vai mostrar aquele conteúdo a mais pessoas e aumentar o seu alcance. Como consequência, por melhores que sejam as nossas intenções, a mensagem do lado de lá alcança assim maior público e a rede social começa a apresentá-la com maior frequência e a mais pessoas. Quem vence realmente o confronto?
Um print estratégico poderá ser uma opção. Reforço a parte do “estratégico”, porque se não houver critério continuaremos a alimentar o tópico do lado de lá, a criar buzz e tendências, mesmo que de forma indireta. Precisamos de escolher melhor as nossas batalhas e parece-me que, neste caso, também entra para a equação a moderação dos nossos egos, porque, quais justiceiros e justiceiras contra movimentos fascistas, parecemos entrar muitas vezes em ondas de cancelamento, de vitórias retumbantes e de mic drops virais. Porque, não nos iludamos, a aprovação dos nossos grupos influencia e molda os nossos comportamentos. E nas redes sociais isso sentimo-lo pela quantidade de likes e corações e estrelas e SLAYS!!! Questiono-me sobre a reflexão que encontramos para justificar uma partilha, uma batalha, uma reação visceral todos os dias. Quão grandiosa e meticulosa pode ser a nossa resposta se a concretizamos todos os dias e toda. a. porra. do. tempo? O efeito matilha surge também aqui e, se o que o movimenta pode ser reconhecido deste lado, a forma tende a beneficiar aquele lado, alimentando-o, extremando-o e, no fim de tudo, perdendo-o. De que nos serve afinal isso?
“Nunca vi gajo mais p*neleiro na vida!”
Como disse, não tenho respostas concretas, tenho feito por afinar a forma como lido com estas questões. Neste momento, e aproveitando o desafio espontâneo do Insónias em Carvão, #Fachina – aqui bem explicado pela Jonasnuts -, silenciei e bloqueei múltiplas contas e palavras-chave que rementem para partidos, pessoas e movimentos que promovem todo o tipo de preconceitos e discriminações. Comprometi-me também em não partilhar e responder a toda e qualquer provocação vinda daquele lado ou de Orgãos de Comunicação Social que sigam essa mesma lógica, pois estes possuem uma influência e, aparentemente também, uma vontade ainda maior do que qualquer pessoa individual. Será pelo menos um mês disto, mas posso desde já dizer que é um descanso. Nestes tempos conturbados de confinamento, vivo, pelo menos nesse campo, uma serenidade como não sentia desde as eleições legislativas de 2019. E isto permitiu-me parar e respirar, contra a pressão do (i)mediatismo das redes sociais.
Limitar o ruído que nos chega ajuda-nos a focar naquilo que importa no combate contra quem, ao abusar do sistema e ao colocá-lo em risco para seu único benefício, nos menospreza e minora. Façamos, pois, o mesmo com os seus insultos e ataques gratuitos e deixemos de cair na esparrela de, em matilha, tudo ser alvo do nosso escrutínio. Se até gatos adotados do lado de lá são razão para libertar a nossa fúria e indignação, que mais nos resta para expressarmos a nossa fúria e indignação? Diria que nada sobra, e tudo é ruído. Seremos também nós ruído e, pior a emenda que o soneto, seremos música para os seus ouvidos.
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