Elogio à vizinhança

Foto de Faith Crabtree na Unsplash

O mundo continua a girar, é o que dizem. Há dias, em que parece que gira para o lado errado. A minha pele, que perdeu a couraça, que está cada vez mais sensível (ao contrário do que seria expectável), sente-se ferida. Onde está a proteção que preciso?

As notícias que me chegam do Uganda, dos EUA, da Croácia ou da Hungria fazem-me tremer, temer por mim, pela minha família, pelas minhas pessoas, pelas nossas famílias. Quem nos protege afinal se não nós mesmas?

Crescemos a pensar que somos merda, abaixo de merda aliás. Tudo à nossa volta nos fez crer isso. A cada ano, a cada dia, ultrapassamos um pouco esse legado. Tentamos criar um mundo em que as nossas crianças não se sintam essa merda apenas por serem diferentes. Tentamos protegê-las e há quem nos acuse de corrompê-las.

O mundo continua a girar.

Somos apenas um momento, é o que me digo.

Tenho sorte de a minha pele apenas se sentir ferida e não estar realmente com a carne ferida, como se vivesse num desses países e me tivesse tornado ostensivamente um alvo.

Se tivéssemos de fugir, para onde iríamos? É uma pergunta que às vezes nos fazemos aqui em casa. Não é uma viagem apaixonante ou um sonho por realizar. É saber qual o nosso plano de fuga.

Porque não é só um constrangimento de direitos, não é apenas um retrocesso de mentalidades, não é ostracização, é uma perseguição. Quem me protege agora? Quem nos protege agora?

Damos as mãos.

Respiramos.

Somos um momento.

Chamei a este texto elogio à vizinhança porque quero elogiar todas as pessoas que nos rodeiam, que nos conhecem, que nos abraçam. É também um elogio às que resistem, às que escolhem não denunciar, às que nos e se protegem mutuamente dessa perseguição.

É um elogio porque olho à minha volta, conheço a minha vizinhança, sinto-me bem onde estou, sinto a ameaça como uma notícia e não na minha porta (ainda), acerco-me de pessoas amigas, mergulho na nossa comunidade, respiro. Acredito nessas pessoas. Acredito que não nos quebrarão.

Acho que estou mais sensível por isso. Porque agora que estou na meia-idade, comecei a acreditar que ser como sou é uma coisa incrível, comecei a amar-me realmente. E, com isso, comecei também a acreditar nas outras pessoas, a achá-las incríveis na sua humanidade, na sua diferença. E são pessoas como nós que nos perseguem, não são monstros diabólicos com olhos vermelhos faiscando. Não são seres que eu simplesmente possa odiar, são pessoas a quem fizeram crer que somos uma ameaça.

O elogio da vizinhança é uma luta contra o medo. Andei décadas a conseguir olhar-me, andámos séculos a conseguirmos vermo-nos – com orgulho. Demorámos décadas, séculos, a abrir e a escancarar portas, de armários e não só. Não vamos fechá-las, não vamos esconder-nos, não vamos baixar os olhos com vergonha e esperar pela misericórdia. Não queremos que as nossas crianças cresçam na humilhação. Se incentivam à denúncia, incentivemos à visibilidade.

Querem que nos escondamos, que simplesmente desapareçamos.

Não é possível, nós somos e queremos ser.  

Queremos viver as nossas vidas e não vamos a lado nenhum.

Por todas as pessoas neste mundo que gira para o lado errado, ergamo-nos, mostremo-nos, criemos laços com as nossas vizinhanças, fundemos alicerces nas nossas comunidades, façamos amizades que nos protejam realmente, ocupemos a praça pública, entremos para a política. Por todas as pessoas desprotegidas, aumentemos a nossa voz, estendamos os nossos braços. Por todas as pessoas perseguidas, exijamos justiça e igualdade.

Não precisamos de uma cerca, precisamos de um circo, de uma vizinhança cheia, que nos ame, respeite e, em vez de nos denunciar, nos aclame com orgulho.   

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