
Tem sido uma constante nos últimos dias, em pleno Mês do Pride há quem diga que até pode ser tudo OK (que óbvio não lhes é, apenas dão a ilusão da benesse), mas deixemos as crianças em paz. Ora, a ideia do “deixem as crianças em paz” e que elas não sejam envolvidas no Pride não é nova. Pode até parecer – com falsidades recentes contra drag queens ou perturbações num evento infantil no Évora Pride – mas estas são ‘preocupações’ recicladas desde, pelo menos, a década de 1970.
A ideia de que os espaços de Orgulho não são apropriados a crianças e adolescentes têm vários pressupostos que procurarei desmontar. Entre outros:
- A orientação sexual e identidade de género podem ser mudadas/educadas/groomed (não podem, mas famílias podem criar espaços de inclusão em que as crianças e adolescentes podem explorar o seu mundo livremente e sem condicionantes ligadas, por exemplo, a papeis ou estereótipos de género. Note-se que me refiro ao condicionamento das famílias, não às ações e escolhas das crianças)
- A arte drag é exclusiva para pessoas adultas (se é verdade que muitos espetáculos de drag acontecem nas noites em bares – até porque historicamente foram para aí remetidos – a expressão da arte drag é imensa e não se limita aos pré-conceitos que algumas pessoas possam ter dela. Tal como outras formas de arte, há espetáculos para todo o tipo de públicos, todas as temáticas e estilos escolhidos pelas artistas)
- As próprias famílias estão alheadas do que pode vir a acontecer (há uma tentativa de afastamento entre crianças e suas responsáveis, como se as mesmas estivessem ao abandono e as colocassem ali em risco. As próprias famílias participam nestes eventos, geralmente com atividades de pinturas, histórias e jogos. O que pode vir a acontecer são umas horas bem passadas e em convívio com outras crianças)
- As famílias arco-íris não são reconhecidas (apesar de reconhecidas na lei em Portugal desde 2016, as famílias arco-íris portuguesas não são legitimadas por quem acha que as mesmas não devem frequentar espaços de Orgulho com as suas próprias crianças. As famílias arco-íris são um dos núcleos do movimento LGBTI+ e é apenas natural que participem)
- Não há crianças LGBTI+ (cada pessoa tem o seu tempo, mas uma parte considerável da população LGBTI+ descobriu-se, ainda que apenas para si inicialmente, em idades bastante jovens e ainda mais no que toca à identidade de género, havendo a partir dos 2 anos uma interiorização do género. Dar-lhes segurança e apoio é também um ato de humanidade e de amor)
- Não fomos antes crianças LGBTI+ (argumentos como aqueles quase fazem crer que não fomos – nós, pessoas adultas LGBTI+ – um dia crianças. E se as gerações mais velhas enfrentaram obstáculos especialmente difíceis como a criminalização da homossexualidade e a invisibilidade das identidades não normativas, felizmente, temos progredido nas últimas décadas para que todas as pessoas possam viver livres e em igualdade a sua identidade. Sim, desde crianças. Quem me dera ter tido na altura as ferramentas e a visibilidade que hoje temos, teria facilitado muito o meu processo de aceitação e de empoderamento pessoais. Remeter novamente para a invisibilidade, para a vergonha e para o armário é um ato de violência contra jovens LGBTI+ que não voltaremos a permitir. Sabemos bem o preço que pagámos por assim termos vivido)
- A empatia e a partilha de momentos com outras realidades não é possível (a criação de laços com outras pessoas, o reforço da empatia para com quem é diferente de nós, a partilha de momentos educativos, pedagógicos e divertidos ajudam à coesão social, ajudam a unir ao invés de desunir. Os eventos do Pride estão abertos a todas as pessoas que defendam os direitos humanos, basta ir a uma marcha ou arraial para entender a variedade de pessoas que junta a sua voz à luta)
Esta é talvez a lição maior que falta passar, a de que estamos aqui a falar de pessoas, de famílias, de deixarmos para trás conceitos bafientos de vergonha por sermos gays, lésbicas, bissexuais, trans, intersexo, queer ou de sermos pais e mães de crianças ou adolescentes que o sejam.
Sonhamos e trabalhamos na construção de um futuro em que a liberdade e a igualdade são vividas plenamente por toda a população. Importa, pois, perceber que tal mundo não é possível, precisamente, sem as crianças. Aquelas que fomos um dia agradecer-nos-ão.
Este tópico esteve em destaque num episódio especial do Podcast Dar Voz A esQrever:
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