A extraordinária vida comum

“Freeheld” traz-nos a história verídica de Laurel Hester e de Stacie Andree no seu combate pela igualdade, num contexto anterior à legalização do casamento a nível nacional nos EUA. Hester é uma detetive a quem é diagnosticado um cancro terminal e que luta pelo direito da companheira receber a pensão reservada aos cônjuges depois da sua morte. O filme acompanha essa luta, proporcionando-nos uns minutos iniciais de bem-estar com o começo da relação de amor das duas mulheres.

Este é um filme longe do glamour, do charme, da envolvência poética de Carol, mas não deixa de ser também fundamental no contexto da luta pelos direitos LGBT em geral e pela visibilidade lésbica em particular.

Torna-se ainda mais significativo exatamente por ser tão cru. Julianne Moore e Ellen Page são duas mulheres lindas mas, neste filme, são filmadas em toda a sua normalidade e banalidade. Desde o seu amor, a sua vida, os seus sonhos e até a própria doença, este é um retrato do que pode ser apelidado de vida comum.

É aqui que o filme se torna mais interessante e, sobretudo, mais importante ao nível da luta contra a homofobia. Qualquer pessoa pode reconhecer-se nessa história, identificar a injustiça da situação e empatizar-se com aquelas mulheres. Nesse sentido, é um filme que tod@s deviam ver, feito ao bom estilo americano da história real e dramática, com um elenco exemplar, porque toca exatamente onde é suposto doer: no dia a dia e na morte.

A mim, toca-me particularmente a evolução da personagem de Hester. No início do filme, é uma lésbica no armário, com a convicção profunda que só vivendo duas vidas paralelas pode proteger a sua dimensão profissional e assegurar uma evolução da carreira. E, no fim do filme e da sua vida, torna-se uma verdadeira ativista, pela força imperiosa das suas circunstâncias. A realidade pura e dura é muito mais impiedosa que qualquer medo ou ameaça latente. O confronto com a injustiça tem um poder reformador na atitude que podemos ter perante a vida.

O inconformismo entra-nos necessariamente na existência e na atitude quando, uma e outra vez, vão surgindo situações em que a passividade e o amochar não são mais opções viáveis. Quando aquilo que antes era considerado uma bênção (a invisibilidade e a indiferença) se torna numa arma terrível de opressão (como o não reconhecimento nem validação de direitos). Quando o único caminho que existe é seguir em frente sem certezas de vitórias ou contrapartidas e, independentemente dos resultados, a luta se impõe.

As verdadeiras mudanças são feitas com as vidas destas pessoas quando, na sua absoluta complacência e passividade, são obrigadas a confrontar-se com uma situação adversa. Neste filme, temos a heroína mais improvável, porque tudo o que deseja é simples e, em certa medida, cândido. Não pretende mover montanhas, mas o seu pedido básico e justo é suficiente para expor uma hipocrisia insuportável e alimentar o rastilho que abre caminho para a justiça.

Tod@s nós damos os nossos passos, percorremos os nossos caminhos, umas vezes mais rapidamente, outras vezes com vagar e relutância – nesse percurso, é na capacidade de sermos tocad@s por outr@s e também de mover outr@s que a mudança se alimenta. E é possível que, nesta estrada individual, nos surpreendamos com aquel@s que entre nós se levantam para fazer a diferença.


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Respostas de 2 a “A extraordinária vida comum”

  1. […] foi nomeado para um GLAAD Media Award: Freeheld, o romance com Ellen Page e Julianne Moore que já tratámos aqui. De notar que outros filmes ficaram fora da lista dado que – embora tratem a temática LGBT, […]

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  2. […] Emma Portner em 2018. Começou a produzir os seus próprios filmes com protagonistas LGBTQ como Freeheld e My Days of Mercy e fez de um guarda-roupa masculino uma condição para assumir papéis. No […]

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