Retrato de uma jovem em chamas – O olhar que queremos ver

Há uns tempos atrás, através da newsletter do meu querido amigo Luís Soares, Tensão Superficial (que recomendo vivamente que subscrevam), conheci uma lista alternativa dos melhores filmes de 2019.

Em primeiro lugar dessa lista figura nada mais nada menos do que este “Retrato de uma jovem em chamas” – no original “Portrait de la jeune fille en feu”.

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Um primeiro lugar absolutamente merecido. Maravilhoso, arrebatador, poético, pictórico… seriam tantos os adjetivos possíveis para o designar.

Mas o filme é mais do que essa adjetivação merecida.

O mundo nunca foi mostrado assim. É isto que sinto ao ver este filme. O seu olhar, o olhar de Céline Sciamma, é absolutamente original, sem concessões, real e empático. E que preciosidade é poder partilhá-lo. É aliás fundamental vê-lo, enriquecer o nosso olhar, aumentar a diversidade e o espetro daquilo que vemos e vivemos. Pois assim nos podemos reconhecer em obras e conteúdos, ainda por cima de excelência.

Como diz nesta entrevista, Céline Sciamma teve de esperar pela idade adulta para poder ver um filme com uma super-heroína como protagonista. Saiu do “Wonder Woman” a achar que a ela tudo era possível, que podia fazer tudo o que quisesse, ser o que quisesse, atingir todas as metas. Algo banal para qualquer homem na maioria dos conteúdos a que temos acesso neste mundo patriarcal.

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Realizadora, produtora e atrizes em Cannes

Nós precisamos destas histórias. Todas as pessoas, todas as pessoas LGBTI, todas as mulheres, as lésbicas, eu. Precisamos de ouvir, ler, ver estas histórias. Histórias de mulheres, num universo e imaginário femininos, vistas e contadas por mulheres. Precisamos deste Retrato de uma jovem em chamas, da história de duas mulheres que se apaixonam. A história de uma artista pintora e de uma mulher presa a um destino que não quer viver. Estas são histórias que nos prendem. Pela história em si, pela narrativa, pela representação e pelas imensas camadas que estão presentes neste filme.

Põe em primeiro plano o amor de duas mulheres. Um amor pouco habitual neste contexto, algures numa inóspita costa francesa no século XVIII, mas filmado, contado e mostrado como um amor intemporal, concreto, material e inesperado. É uma história de amor, sim, em que a impossibilidade não nasce exclusivamente da homossexualidade, mas sim da condição feminina.

E é aqui que o filme começa a mostrar todas as suas camadas. Para lá da arrebatadora e apaixonante história de amor, temos um olhar sobre um mundo de mulheres, nas suas condições limitadas, oprimidas, pré-formatadas.

Atenção: a partir daqui, o texto pode ter spoilers. Trailer no final.

Uma das protagonistas, Héloïse, herdou o fardo da sua irmã morta: o casamento arranjado. Sem escolha, sozinha apenas com a mãe, o contrato com o homem e o seu nome é a única alternativa para viver. A outra protagonista, Marianne, sai desse padrão, seguindo o percurso artístico do seu pai como pintora, podendo assim afirmar a sua independência. Ainda assim, conseguimos perceber que, além das encomendas de retratos (como o de Heloïse) e aulas de pintura que dá a outras jovens mulheres (como começa o filme), o seu trabalho artístico tem de ser apresentado com o nome de pai, para ser aceite e apreciado. O contraste entre os caminhos das duas mulheres é evidente, mas ambas partilham a condição minoritária que a sociedade lhes impõe.

O filme permite-nos ter acesso a um mundo inexplorado, também aqui. Vemos uma mulher artista no século XVIII, pintora mas também com estudos musicais, uma mulher independente que fuma cachimbo e se atira para o mar alto para salvar uma tela perante o olhar impávido de vários remadores homens. Ter mundo, ter um talento, uma profissão, uma ferramenta, é a porta para a liberdade daquela mulher. Ela teve um “quarto só para si”, como exigia Virginia Wolf para todas as mulheres, que lhe permite ser uma pessoa, ser uma artista e não apenas alguém que está apenas em relação com algum homem (embora até ela seja a pintora filha do pintor e as suas obras sejam elogiadas como sendo de seu pai). A autora e realizadora Céline Sciamma vai mais longe na apresentação deste mundo, criando um filme só delas, em que a figura masculina aparece como um elemento de desequilíbrio mas irrelevante para a história – o pretendente de Milão nunca aparece e quando um homem surge no espaço delas é para anunciar que o tempo do amor entre Heloïse e Marianne chegou ao fim.

Assim, este filme passa em grande o teste de Bechdel, aliás torna-o irrelevante porque não há nada aqui para além da condição e do universo feminino. Porque histórias masculinas temos tantas (e tão boas em tantos casos), mas histórias assim de mulheres temos tão poucas. Se o amor é central, essas chamas da paixão não nos deixam num estado complacente, porque o filme tem um olhar feminista que nos exige a perceção atenta e terna ao que se passa naquele mundo.

A personagem de Sophie, a empregada da casa, é crucial nesse olhar, quando nos leva, juntamente com as duas personagens principais, a um encontro só de mulheres que convivem e cantam (dando-nos imagens incríveis). E, sobretudo, quando é objeto de solidariedade e soraridade das outras mulheres por ter necessidade de abortar. Essa é uma cena crucial do filme, que choca Heloïse e Marianne, mas que as eleva, pois, como testemunhas, tornam-se atrizes e autoras da representação daquele momento. Através da arte, através da pintura, dão sentido àquela violência, não deixando que seja um sofrimento vazio e em vão.

Até a personagem da mãe de Heloïse, a Condessa, é importante para este olhar feminista que perpassa o filme. A Condessa não tem nome e, a meu ver, até isso é propositado, pois também ela se perdeu, e aquilo que gostava, quando casou com o pai das suas filhas – com certeza, o Conde.

A única coisa a fazer é ver este filme. Não interessa quando ou como. Ver este e todos os outros de Célline Sciamma – já falei aqui de um. É poético, é político, é romântico, é feminista, tem imagens assombrosas e ideias ainda melhores.


O filme Retrato de Uma Jovem em Chamas esteve em destaque no Podcast Dar Voz A esQrever 🎙🏳️‍🌈, oiçam: