Mrs. America traz a luta feminista para os dias de hoje

A premissa é aparentemente simples. Mrs. America conta a história de várias mulheres no início da campanha para a igualdade de género através da Emenda da Igualdade de Direitos (ERA) na Constituição dos EUA. E digo início, pois esta caminhada, que começou aqui nos anos 1960/70, decorre até aos dias de hoje quando o estado da Virgínia ratificou a emenda a 15 de janeiro… de 2020.

Mas a trama ganha novos contornos quando uma das figuras centrais desse movimento,Phyllis Schlafly, e esta é interpretada magistralmente por Cate Blanchett, uma das atrizes mais fervorosas no que toca à igualdade das mulheres em Hollywood. Isto porque Schlafly, uma neoconservadora, mãe de família com recursos e casada com um advogado igualmente conservador, usou a sua mailing list, composta essencialmente por outras donas de casa, para se opor à ratificação da ERA e lutar ativamente contra a igualdade de género, os direitos das mulheres sobre o seu próprio corpo e os direitos LGBTI nos EUA nos anos 1970.

Os feminismos são movimentos de inquietações, indignações, reflexões, partilhas de saberes e de seres, que lutam pela promoção dos direitos humanos das mulheres e pela igualdade nas mais diversas esferas das vidas.

Schlafly vê o crescente movimento político feminista como um ataque aos valores da (sua) família e da (sua) identidade como mulher, defendendo os moldes mais conservadores do (seu) universo. Sim, tem a sorte de ter uma família com dinheiro e poder que lhe dá um aparente conforto se se submeter ao marido, se jogar o esquema do patriarcado. Mas é também pela incoerência e fragilidade aqui reveladas que Cate brilha, naquele que é, facilmente, um dos seus papéis maiores – e não serão poucos.

É que Schlafly é também ela vítima do sistema por que luta. É tocada, ainda que ao de leve, nas reuniões com outros agentes políticos; pedem-lhe a ela (a única mulher na sala) para tomar notas numa reunião entre supostos iguais; ou ainda é autorizada pelo marido, na plateia a aplaudi-la, para comparecer em comícios. Esta é também uma mulher alheada da realidade de outras mulheres mais desfavorecidas em seu redor, basta perceber as vezes que despreza e impõe tarefas extraordinárias à mulher que trabalha em sua casa — ou direi antes a do marido —, uma mulher negra que não tem outro remédio, de mulher para mulher, senão aceitar esse tipo de microabusos. O privilégio e o poder podem facilmente cegar quem prega a maior das virtudes.

Não posso deixar de realçar o momento em que, depois de iniciar uma campanha populista contra as feministas lésbicas, Schlafly descobre que o filho mais velho, John, é gay. Confronta-o sobre a sua sexualidade de maneira indireta, mas inconfundivelmente aterradora para quem alguma vez teve de passar situação semelhante, contando-lhe que ela conseguiu parar de fumar porque “a mente é mais forte que o corpo” e, como tal, “só precisas exercitar a força de vontade.

A violência contra as nossas identidades, a violência contra os nossos corpos, as nossas decisões, a nossa autonomia. A violência que é sistémica, é estrutural, é do Estado contra nós, é da Sociedade contra nós, é do Indivíduo contra nós. A violência que se sente na rua, nas escolas, nos trabalhos, em casa… ou em qualquer outro espaço. As que de nós sobrevivem e que têm imensas histórias de horror e sofrimento para contar. As de nós que já partiram, na maioria das vezes silenciadas e apagadas, caídas no esquecimento.

Mas não se julgue que Mrs. America se esgota na personagem de Schlafly, muito pelo contrário. Se a série é escrita e realizada por mulheres — Dahvi Waller, a criadora da série, já tem no currículo as aclamadas Mad Men e Donas de Casa Desesperadas — aqui Blanchett divide o ecrã com Rose Byrne (Gloria Steinem), Tracey Ullman (Betty Friedan), Margo Martindale (Bella Abzug), Elizabeth Banks (Jill Ruckelshaus) e Uzo Aduba (Shirley Chisholm). Cada uma destas personagens tem o seu próprio episódio temático, dando-lhes a visibilidade e a importância que nem sempre todas receberam na altura, como por exemplo Shirley Chisholm, a primeira congressista negra nos EUA e um dos símbolos da luta feminista mais vezes esquecido.

E, além de Schlafly, não só as mulheres pró-ERA têm o seu episódio especial, Sarah Paulson (Alice Macray, amiga e anti-ERA) tem igualmente um dos episódios mais brilhantes de toda a minissérie. É no momento em que, sem a influência do grupo conservador e — porque não? — com a ajuda de um comprimido em pleno fim de semana de conferência de mulheres, Macray se apercebe da diversidade e do respeito que o movimento pró-ERA tem perante as suas mulheres, algo que ela nunca sentiu dentro do seu núcleo conservador. Sempre a silenciaram e desprezaram quando questionava algum pequeno detalhe da campanha que ela própria tinha, cegamente, ajudado a construir. Foi um choque para ela o momento em que percebeu que quem era anti-ERA era, afinal de contas, anti-tudo. Não havia qualquer compromisso, qualquer ponto de união, qualquer meio-caminho. E, pior, quem ousasse fazê-lo era ridicularizado e afastado. Este era, afinal de contas, o abrir de olhos que Macray tão precisava.

É esta a realidade diversa e inclusiva que enriquece toda a história e, sem diabolizar verdadeiramente ninguém, apresenta um conjunto de mulheres tão notáveis como imperfeitas, mas é essa pluralidade que as une no movimento, o clássico uma por todas, todas por uma, uma atitude muitas vezes incompreendida por quem tende a olhar mais para o seu umbigo e que acaba por ser motivo de muitas derrotas pessoais e solitárias.

“Travou uma batalha importante, mas às vezes a batalha segue-nos até em casa.” – Presidente Reagan a Schlafly após a derrota da sua campanha.

É sabido que Schlafly aspirava conseguir um cargo na Casa Branca, tendo dado previamente as suas jogadas políticas de forma a conseguir alcançar um cargo de poder. Mas solitária é precisamente a palavra-chave do final da minissérie. Na cena final, que referencia o filme de culto “Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles”, vemos Schlafly na cozinha e de avental, redimida, a descascar maçãs. Encontra-se ali presa no papel patriarcal de uma mulher, após ter lutado contra a ratificação da ERA e defender o direito de uma mulher ser — e ser unicamente — uma dona de casa. É isso que ela é naquele instante e, por fim, não pode deixar de ser nunca.

Nota: Texto revisto pela Ana Teresa.



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Respostas de 4 a “Mrs. America traz a luta feminista para os dias de hoje”

  1. […] acerca das políticas do Orbán da Hungria, da hashtag meio normativa que é #loveislove, da série Mrs. America na HBO e finalmente da música queer (#Chromatica incluído) que vos inspirou nesta quarentena, assunto […]

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  2. […] da X-Woman Kitty Pryde, quarenta anos depois da sua criação. Ainda rematamos com um reprise de Mrs. America, a série ficcional sobre a luta pelos direitos das mulheres nos anos […]

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  3. […] morder os calcanhares de Hollywood tivemos outras três séries incríveis: Mrs. America, um recontar das lutas feministas dos anos 70 com um elenco de mulheres incríveis que incluía […]

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  4. […] Love também estava entre um grupo de lésbicas que lutaram para serem reconhecidas pela National Organization for Women, uma batalha que foi emblemática dos primeiros anos de conflito dentro movimento feminino, que muitas vezes era visto como “muito branco e muito hétero”. A presidente da NOW, Betty Friedan, ridicularizou as feministas lésbicas como “a Ameaça da Lavanda”, um período de perseguição da comunidade LGBTI+ nos anos 1950 e 1960 nos Estados Unidos da América. Friedan via as preocupações das lésbicas como uma ameaça aos objetivos políticos do movimento feminista. […]

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