As gays, as manas, as bichas: a complexidade da linguagem na comunidade LGBTI+

As gays, as manas, as bichas: a complexidade da linguagem na comunidade LGBTI+

“As gays, as manas, as bichas”: No coração da comunidade LGBTI+, a linguagem não é apenas um meio de comunicação, mas uma ferramenta poderosa de expressão de identidade, resistência e inclusão. A utilização de pronomes femininos e termos como os anteriores por homens gay cisgénero é uma prática que reflete a riqueza e a complexidade desta expressão.

Para muitos dentro da comunidade gay, recorrer ao feminino na interação entre pares vai além de um mero hábito linguístico. Representa uma forma de abraçar a feminilidade, compartilhar vulnerabilidades e fortalecer laços comunitários, numa celebração da identidade e da cumplicidade. É a última apropriação do insulto de quem cresceu a ouvi-lo onde tudo o que era associado ao feminino servia de ofensa. Quantas de nós não passámos a infância e adolescência a sermos chamadas, precisamente, de meninas ou de bichas? Quantas de nós não sentiu o poder em responder anos mais tarde, precisamente, “sim, sou bicha“? “O que vais fazer sobre isso?” Reforço que também aqui o Orgulho existe como resposta à vergonha e a apropriação do insulto desarma quem nos pretende minorar.

Dito isto, podem estas práticas ser hoje vistas como uma perpetuação do feminino precisamente como uma ofensa? Bem, como em quase tudo na vida, depende.

A linguagem pode ser uma espada de dois gumes: resistência e perpetuação de estereótipos

O uso do feminino por parte de homens gay é uma espada de dois gumes ao ser simultaneamente subversiva e potencialmente problemática. Ao desafiar o binário de género e reivindicar estereótipos de forma empoderada, a comunidade gay subverte as normas vigentes tradicionais. Porém, existe o risco de perpetuar visões estereotipadas e negativas sobre a feminilidade, especialmente se não houver alinhamento com o respeito pelas identidades trans e não binárias.

Historicamente, a adoção de pronomes e linguagem femininos serviu como um mecanismo de sobrevivência e sigilo. Este código conhecido internamente permitiu que membros da comunidade LGBTI+ comunicassem entre si e se identificassem em segurança em tempos e lugares onde identidades queer eram perseguidas. Esta prática tem raízes profundas e servia como um símbolo de resistência e proteção, fosse em encontros ou, por exemplo, em bares.

Nos dias de hoje, importa referir, ainda há locais e países em que este tipo de códigos são necessários para a própria segurança da população LGBTI+. Não é, portanto, coisa do passado e é, sim, uma prática que está enraizada na cultura queer pela perseguição que sofreu – e sofre – ao longo da história. Faz parte de nós.

No entanto, é crucial reconhecer e abordar as críticas à utilização destes termos, particularmente quanto à reprodução de misoginia e ao impacto sobre mulheres racializadas dentro da comunidade. A reflexão sobre o uso da linguagem e a sua intersecção com etnia, género e classe é fundamental para uma prática inclusiva e respeitosa.

O contexto do uso da linguagem conta

A linguagem está longe de ser estática e a mesma evolui refletindo as mudanças nas dinâmicas de poder e identidade. Neste contexto, a importância do consentimento e da inclusão torna-se mais evidente, com a necessidade de uma abordagem consciente e adaptável ao uso de pronomes e termos de tratamento.

A linguagem na comunidade LGBTI+ – sejam “as gays”, “as manas”, “as bichas” ou outras – é um espelho da sua diversidade, complexidade e riqueza. Ao navegar as nuances da sua utilização, é possível honrar tanto a história de resistência como o compromisso contínuo com a inclusão e o respeito por todas as identidades. A forma como escolhemos usar a linguagem – para fora, mas também para dentro da comunidade – reflete os nossos valores e o desejo de um futuro onde todas nos possamos expressar livremente e sem medo. E, para isso, a palavra, com todas as suas nuances e contradições, é rainha.


O tema das gays esteve em foco no Podcast Dar Voz a esQrever.

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