A Revolução de Sex Education

A segunda temporada de Sex Education estreou a 17 de janeiro, e a série da Netflix, já popular anteriormente, transformou-se num verdadeiro furacão. E o fenómeno é tão assoberbante por uma razão bem simples: nunca ninguém fez ou viu algo semelhante em televisão. A série britânica criada por Laurie Nunn continua a acompanhar Otis, e os seus amigos e colegas da escola da pequena Moordale, no caminho tortuoso e incoerente do que é ser-se adolescente e tentar encontrar uma saída para a angústia da puberdade e da descoberta, sempre atabalhoada, da sexualidade. 

Atabalhoada porque não há nada de sensual nessa descoberta, e é a estranheza feita normalidade de Sex Education que é um dos seus maiores triunfos. A desmistificação das primeiras experiências sexuais como naturalmente alienígenas — sim, potencialmente cómicas — é refrescante no panorama da ficção, que continua a idealizá-las de forma inverosímil, até nefasta para quem inicia a sexualidade esperando que essa estreia seja mágica e bucólica. 

A revolução que Sex Education está a provocar tem uma origem clara. Em 2020, ainda não temos uma educação sexual abrangente e que nos informe dos pormenores mundanos da nossa sexualidade enquanto nos alerta dos seus limites. É por isso que é tão importante mostrar os erros e atribulações destes adolescentes porque, na realidade, ainda são muitas vezes os nossos. Infelizmente, já adultos, continuamos a alimentar a fantasia do sexo enquanto algo que tem de ser perfeito. A variedade de temas da vida sexual de qualquer pessoa que a série aborda é inacreditável, sempre com o respeito que merecem e de forma inacreditavelmente leve e descomplexada. Não há tabus. Pelo contrário, existe uma tentativa corajosa de os negar e fazer acreditar que nada na sexualidade consensual deve causar vergonha. 

Como adolescente gay, obtive muita da minha educação sexual da pornografia e não poderia haver pior professora que ela. Não só não me preparou para as primeiras experiências sexuais como as tornou absurdas e sofríveis de tão longe que estavam daquilo que me habituei a ver durante anos. Até porque não pode ser esse o papel da pornografia, é uma educação que tem de vir de trás e que nos faça perceber que aquilo nada mais é do que uma fantasia ultraelaborada. É por isso que, pessoalmente, fiquei ainda chocado como no sexto episódio é abordado o clister anal, vulgo “chuca”, de forma tão corriqueira. Porque o é para muitos e muitas que praticam sexo anal e assim deve ser encarada. Sem preconceitos nem meias palavras.

Mas Sex Education vai muito mais longe do que isso. Ensina – sim, ENSINA — o que é o espectro da sexualidade, a fluidez nada normativa do género, da importância do “não” e da consensualidade. Uma das narrativas mais acutilantes da segunda temporada pertence a Aimee, a melhor amiga de Maeve, que, numa viagem normal de autocarro é vítima de assédio sexual, inspirado em algo que aconteceu à criadora da série. Um episódio que Aimee descarta inicialmente, mas que depois volta para a assombrar. E a forma como começa a ultrapassar o trauma envolve o reconhecimento do mesmo e a partilha de histórias similares, um momento de comunhão feminina também raro, especialmente quando a ficção continua a querer colocar as mulheres umas contra as outras, em lugar de encontrar pontos comuns, coisas que a série também faz de forma brilhante.

Dizer que Sex Education é revolucionária é quase eufemismo. Sex Education é um game changer. Porque não só nunca vimos nada assim, mas também porque incide um holofote gigante sobre a forma como continuamos a manter a sexualidade na penumbra em lugar de vivê-la como parte integrante e integrada das nossas vidas. Às claras, informados e informadas e sem medos nem vergonhas. Sex Education não é uma mera série de televisão. É serviço público e deve fazer parte do currículo de qualquer ensino secundário. Até porque, infelizmente, neste momento não temos melhor “professora” que Jean Milburn através da minha eterna paixão que é Gillian Anderson. Venha a terceira temporada.

Nota: Texto revisto pela Ana Teresa.


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Respostas de 11 a “A Revolução de Sex Education”

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