RuPaul Drag Race e a Celebração da Marginalização 

Shantay you stay. Sashay away.

Gentlemen, start your engines and may the best woman win. Catch-phrases já iconográficas para quem assiste, que nem uma Britney colegial pré-colapso careca, a um dos mais improváveis fenómenos de sucesso na televisão Americana. (A Madre Superiora) RuPaul não é indiferente a ninguém minimamente versado na cultura pop LGBT e foi talvez a primeira e (até há pouco tempo) única estrela travesti dos Estados Unidos da América. Nos anos 90 estabeleceu a sua marca, foi modelo e representante de marcas como a M.A.C. Uma espécie Tyra Banks mas com talento e maquilhagem muito menos cansada. Flawless. Depois de um interregno estreou em 2009 na Logo um improvável reality show que marcou uma nova era para a Bicha (e Micha) Moderna.

RuPaul’s Drag Race acompanha semanalmente catorze concorrentes drag a trocarem a sua valorosa e duvidosa dignidade pela chance de alcançar o glorioso título de America’s Next Drag Superstar. O formato é similar a programas como Project Runaway e America’s Next Top Model, mas aqueles aspirantes a drama queen são meninos de coro xoninhas comparativamente a estas cabras magníficas. Cada eliminação é determinada depois de duas queens, que puseram uma peruca mais oleosa ou não souberam fazer a bainha das hotpants de modo a mostrar o rêgo depilado, fazerem “um lip sync pelas suas vidas”. Vale tudo menos golpes de wrestling, mas não é que eles não aconteçam de vez em quando. Não é oh balofa?

O golpe de génio de RuPaul, para além de ser pior que sífilis a fazer plugs dos seus singles no iTunes para a paneleiragem curtir em Ibiza, é a mesma regra fundamental do travestismo (e já percebi, desta porra de artigo): nunca se levar demasiado a sério. Afinal de contas são simplesmente, como diz uma das suas mais memoráveis cabras reinantes, “homens de peruca“. A realidade é que ainda há poucos anos quando se pensava em travestis o esteréotipo sarnento de imitador de diva acabada, com maquilhagem do chinês e um playback muitas vezes mais sofrível que o da Mariah pós-Glitter, era ainda um preconceito regente.

Se nas primeiras temporadas do programa ainda parecia haver uma tendência para as concorrentes mais deslavadas serem maioritariamente chapa três umas das outras, esse paradigma foi mudando e novos estilos de drag foram emergindo. Muitas vezes relegadas para espectáculos de segunda em grutas mais húmidas que o Finalmente ou ignoradas por caírem totalmente fora do baralho, as queens mais ostracizadas e irreverentes do meio foram ao longo das várias temporadas da competição ganhando protagonismo e cuspindo nas campas das outras vagabundas. Now sissy that walk!

 

As vitórias ejaculantes de Sharon Needles e Jinkx Monsoon foram momentos que não só definiram o programa, mas remodelaram o panorama das tranny e seus fiéis tranny chasers, nos Estados Unidos e no resto do Mundo. No início das respectivas temporadas foram completamente enxovalhadas pelas outras concorrentes mais “polidas”. Sharon era uma pêga gótica absolutamente fixada no lado pin-up do terror e Jinkx uma estrela desmanchada do vaudeville e slapstick dos anos 20 e com um sentido de humor demasiado refinado para aqueles cérebros de rôla perceberem que ia muito além dos seus QI. Naturalmente jamais poderiam ganhar e só foram levadas a sério quando já era tarde demais. Chupa Phi Phi. Leva a Roxxy a fazer xixi. Olha rimou, yes mamaaaaaaaaah. Laganja returns, okaaaaaaaaaaaaaaay. Cough, desculpem. Sigamos.

Os underdogs passaram a ser os líderes e não foi surpresa nenhuma quando Bianca Del Rio, uma comediante de stand-up, veterana mais impiedosa que a Joan Rivers quando ainda andava com o Benfica, ou Adore Delano, uma jovem queen de estilo imberbe mas com uma personalidade tão gigante como a trampa deliciosa que lhe sai da boca, chegaram ao final da sexta temporada. No meio de toda a extravagância, há em RuPaul Drag Race mensagens universais de tolerância pela diferença e celebração da identidade única de cada um. Temáticas sensíveis como abandono familiar, VIH no novo milénio, transfobia e homofobia são também abordadas de forma leve mas bem mais eficaz que muita propaganda de folheto.

Ironicamente o próprio RuPaul e a produção do programa foram acusados de transfobia por promoverem o uso de palavras como she-male e outros termos derrogatórios que foram utilizados durante décadas para denegrir pessoas travestis e também transgénero. No entanto a apropriação da palavra durante o programa retira-lhe qualquer conotação negativa e vai efectivamente apagando-a. E no final de contas… São só “homens de peruca“. Por isso acalmem lá as passarinhas sobressaltadas. Apreciem lá a coisa mais deliciosa a aparecer no Mundo depois do Jake Gyllenhaal ter ultrapassado a puberdade e ido passear as vacas.

 

If you can’t love yourself how in the hell are you gonna love somebody else?

Can I get an amen up in here!?!


A esQrever no teu email

Subscreve e recebe os artigos mais recentes na tua caixa de email

Respostas de 20 a “RuPaul Drag Race e a Celebração da Marginalização ”

  1. Adorei! 🙂

    Gostar

  2. RuPaul não é travesti. Confundiu art drag com transnvestilidade e transgeneridade; uma das questões ressaltadas durante o programa é essa diferença.

    Gostar

  3. Avatar de Filipe Cortes Figueiredo
    Filipe Cortes Figueiredo

    He he he! Grande artigo!

    Gostar

  4. […] da arte a nível mundial por efeito do modelo americano – falo da influência estrondosa de RuPaul claro – tem vindo a tornar clara a necessidade de separar o mais tradicional transformismo e […]

    Gostar

  5. […] o Finalmente, é maioritariamente conhecida pelos seus shows transformistas. Mas com o advento do RuPaul’s Drag Race, que fez este ano já uma década de existência, o drag veio para o mainstream e tornou-se parte […]

    Gostar

  6. […] como mulher. Sempre me senti confortável com o corpo de homem. Mas depois em 2009 comecei a ver RuPaul’s Drag Race, tal como esta nova geração, somos todos filhas do RuPaul. Aí comecei a explorar outras queens […]

    Gostar

  7. […] Acho que o RuPaul’s Drag Race acendeu a chama aqui. O que falta? Em Toronto temos uma espécie de gay Village com três ou quatro […]

    Gostar

  8. […] muito excitado em relação a isso. O drag está numa fase muito interessante. E há que creditar o RuPaul’s Drag Race. E o RuPaul não é de todo um fã do Priscilla, já agora. Ele disse-me pessoalmente que prefere o […]

    Gostar

  9. […] no sexo se não tivesse estabelecido previamente um laço com a pessoa. Foi a ver programas como RuPaul’s Drag Race e Naked Attraction (don’t judge), filmes como Boys Don’t Cry e Something Must Break e vídeos […]

    Gostar

  10. […] cortesia de Katya Zamolodchikova. Não é por acaso que existem tantas referências a RuPaul’s Drag Race, o reality show de competição entre drag queens americanas que já vai na sua 14ª temporada, […]

    Gostar

  11. […] Eye, a ativista trans Laverne Cox, o medalhado olímpico Adam Rippon, o vanguardista Billy Porter, RuPaul e o cast de Drag Race, entre muitos muitos outros e outras. A mais surpreendente não deixa de ser Katy Perry, a sua […]

    Gostar

  12. […] O Drag Syndrome ganhou fãs de relevo na área do espetáculo Drag, nomeadamente Charlie Hides, participante do famoso Rupaul’s Drag Race. […]

    Gostar

  13. […] ontem anunciadas as duas novas temporadas de RuPaul’s Drag Race, o concurso/reality-show que revolucionou a arte do drag e trouxe a cultura queer para o mainstream, com todos os efeitos positivos (e alguns negativos). […]

    Gostar

  14. […] o RuPaul’s Drag Race continua no ar com a sua décima segunda temporada, que apesar do escândalo Sherry Pie – que […]

    Gostar

  15. […] e muitos devem conhecer já Courtney Act, provavelmente de Drag Race, onde a drag queen Australiana se tornou numa estrela instantânea a nível mundial. Mas Act, ou […]

    Gostar

  16. […] de Drag Race. O mesmo foi visto recentemente num bar gay a assistir ao final da 14ª temporada da popular série liderada por RuPaul. Mas o celebrado ator do mundo Star Wars ou do clássico de ficção científica Ex Machina revelou […]

    Gostar

  17. […] “É uma tragédia como o nosso país se tornou tão dividido, e isso realmente parte o meu coração”, explicou o criador da chancela global RuPaul’s Drag Race. […]

    Gostar

  18. […] uma sensação global no mundo das Drag Queens. Foi uma das finalistas da oitava temporada de RuPaul’s Drag Race e tem vindo a reafirmar-se no mundo da arte drag desde então. Com a sua mistura única de looks […]

    Gostar

  19. […] drag queen conhecida por participações em “RuPaul’s Drag Race“, “Dancing With the Stars” e como anfitriã do programa “We’re […]

    Gostar

  20. […] conquista de Nymphia Wind em RuPaul’s Drag Race não é apenas uma vitória pessoal, mas um marco descrito como o “orgulho de […]

    Gostar

Deixe uma resposta para RuPaul condena aumento de protestos e ataques contra o drag: “Parte-me o coração” – esQrever Cancelar resposta

Apoia a esQrever

Este é um projeto comunitário, voluntário e sem fins lucrativos, criado em 2014, e nunca vamos cobrar pelo conteúdo produzido, nem aceitar patrocínios que nos possam condicionar de alguma forma. Mas este é também um projeto que tem um custo financeiro pelas várias ferramentas que precisa usar – como o site, o domínio ou equipamento para a gravação do Podcast. Por isso, e caso possas, ajuda-nos a colmatar parte desses custos. Oferece-nos um café, um chá, ou outro valor que te faça sentido. Estes apoios são sempre bem-vindos 🌈

Buy Me a Coffee at ko-fi.com